QUEIROZ, Maria José de. Sobre os rios que
vão.
Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. 338p.
Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. 338p.
O romance Sobre os
rios que vão narra a história de uma família de origem judaico-búlgara no
interior do estado de São Paulo. O enredo gira em torno do jovem Joel Levi que,
para tentar burlar os impasses da identidade e da memória judaica, troca seu
nome para Jari Leite. Estão no horizonte dessa trama a sua relação com o
passado de sua família e, por extensão, com a sua herança sefardita. Babilônia, nessa história de exílio, é, no Brasil,
metafórica, ou seja, corresponde aos vários locais onde suas personagens vivem
suas histórias: a cidade de São Paulo, após a imigração de Fatuel, o pai de
Joel; o interior paulista, São Godofredo, onde ele constituiu família e se
tornou um luthier; para Joel, também
a cidade de São Paulo de seus estudos e do tio Mattei, depois sua experiência
na Alemanha e na França. Assim, essa “Babilônia” transmuta-se num lugar
imaginário, na verdade um estado de espírito no qual lamentam-se os males da
ausência.
“Sem meios para me instruir, aprendi, em casa,
com meu pai, que é marceneiro, a trabalhar a madeira. E o que mais queria era
possuir um violino. Meu sonho era ser violinista. Deus não permitiu que eu o
realizasse. Não me queixo. Toco um pouco e transferi para a minha modesta
fábrica de instrumentos a paixão que sempre senti pela música. Acho que poder
fabricar o próprio instrumento aumenta o prazer de tocá-lo. A minha impressão é
que ao executar uma peça eu retiro de dentro do violino os sons e os harmônicos
que eu mesmo pus lá dentro.” (QUEIROZ, 1990. p. 102).
“Nunca
houve, nem haverá, uma cidade como Berlim. Tive a impressão de que estávamos na
véspera do fim do mundo. Abraham me repetiu um dia a frase de uma amiga sua:
"Aqui, uma mulher custa um cigarro e um quilo de pão, um milhão de
marcos". Mas não era só a mulher: o homem também valia pouco. O que
custava caro era a comida. Num cartaz de cabaré, li e anotei esta frase
formidável: "Berlim, teu parceiro de dança é a morte". E a morte veio
com a guerra. Tudo o que aconteceu depois você já sabe. Faz parte da história:
os conflitos entre nazistas e comunistas, os desfiles de rua e o fatídico 10 de
maio, quando Goebbels e os estudantes lançaram ao fogo milhares de de livros.
Quando a Alemanha foi invadida eu já estava no Brasil.” (QUEIROZ, 1990. p. 173).
“Restava
saber se era isso que desejava... que parte cabia ao Brasil no seu coração? E
na sua inteligência? O de que gostava, e que curtia aqui, não tinha preço. Nem
nome. Era a alegria de respirar o ar de casa, de cheirar a roupa de cama lavada
uma vez por semana, de ouvir gente falando português, de ler os jornais
pendurados do lado de fora das bancas, de admirar o riso espontâneo que ainda
enfeitava, apesar dos pesares, o rosto das pessoas. Mais desdentadas que
fossem. Mas... e as agressões que sofria ao descer à rua? Os mendigos deitados
nos vãos das portas, os pivetes em corridas desabaladas, fazendo acrobacias nas
traseiras dos ônibus, as sarjetas imundas, as valas negaras a céu aberto, os
passeios ocupados por carros e vendedores ambulantes, a desobediência às leis e
às regras miúdas da convivência... Ficaria livre de tudo isso. E de muito mais.
Até da irritante resignação dos brasileiros diante da corrupção, da injustiça,
da fraude, da impunidade e da demagogia dos políticos. Só que a inconsciência,
ou talvez a pouca seriedade com que se comportam, não é para desprezar-se: se
não a tivessem, como sobreviveriam aos trancos da miséria, da calamidade e da
desigualdade social? A inconsciência aqui é uma forma de defesa...” (QUEIROZ,
1990. p. 336).
Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG
Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG
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