Aos 84 anos, a escritora
mineira Maria José de Queiroz, radicada em Paris, se prepara para lançar o
romance Terra incógnita. Autora do
romance histórico Joaquina, a filha do
Tiradentes, ela faz da liberdade o fundamento de sua extensa obra enraizada
em Minas.
Bertha Maakaroun
04/10/2019 04:00 / Caderno Pensar / Jornal Estado de
Minas
''A língua é a própria alma. É o que nos dá vida, nos
traz para o outro. Você fala que gosta de sua mãe, ou de um prato. A sua língua
é o seu corpo pedindo socorro em qualquer circunstância que esteja, quando você
tem fome, quando tem solidão, em todos os momentos, a sua língua está ali. A
coisa só existe a partir do momento em que há a palavra''
Maria José de Queiroz
escritora
escritora
Dos Autos da
devassa, uma única frase no terceiro de 11 volumes ilumina um colosso de
palavras arquitetadas para arrastar o libertário à forca. Embaralhada em meio
ao mais extenso processo jurídico do período colonial, lá está a nova sentença:
Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, era solteiro e tinha uma filha
natural. Quase dois séculos se passaram, até que Joaquina, essa obscura criança
bastarda da Inconfidência, engolida pela dramática história de um povo em busca
da liberdade e de um herói de ascendência amaldiçoada, ganhasse corpo e vulto.
E assim se fez em 1987, ao ritmo da trama ficcional bordada por Maria José de
Queiroz, sob o título de Joaquina, filha
do Tiradentes. Foi este o romance histórico de uma extensa obra desta
belo-horizontina, residente em Paris, considerada uma das maiores escritoras
vivas da língua portuguesa. Até então, Maria José de Queiroz dedicava-se
a ensaios acadêmicos, tidos como extraordinários pela pesquisa envolvida
e qualidade dos textos.
Mais de três décadas depois, Joaquina – que nas palavras
de Carlos Drummond de Andrade a história “nem se lembrou de esquecer” –, foi
desperta por Maria José de Queiroz para o mundo. Aos 84 anos, a escritora,
doutora em letras e catedrática da Universidade Federal de Minas Gerais, que já
foi professora visitante das universidades de Harvard e Berkeley (EUA) e mantém
vínculo, entre outras, com Paris – Sorbonne, na França, prepara-se para a nova
edição do ensaio A literatura encarcerada
(1981), pela editora Caravana Grupo Editorial. Pela mesma editora, ela lançará
em novembro mais um romance, Terra
incógnita, que se soma à extensa obra, de mais de 30 títulos, incluindo
ensaios, poesias, romances e contos.
Membro da Academia Mineira de Letras (AML) – sucedeu a
Affonso Penna Júnior na cadeira 40, cujo patrono é o visconde de Caeté –, Maria
José será homenageada pela academia em 20 de novembro, ao completar 50 anos de
cátedra. “Num país em que a cultura é um desafio e um defeito, os estudos
fundamentais dela sobre escritos do cárcere, do exílio, da literatura, dos
indígenas, da pobreza e de tantos outros temas, aliados a uma profunda reflexão
sobre a mulher, sobre o papel da mulher intelectual e escritora no Brasil, são
ainda pouco estudados”, avalia Lyslei Nascimento, professora de teoria da
literatura e literatura comparada da Faculdade de Letras da UFMG, pesquisadora
e referência sobre a obra de Maria José de Queiroz.
Um profundo e rigoroso trabalho de pesquisa, descrito por
Pedro Nava como “catar, separar, escolher”, são qualidades de estilo da
ficcionista mineira. “É artesanal, que passa por um empreendimento pautado pela
erudição e pelo requinte da elaboração pormenorizada de cenários e cenas da
vida mineira”, afirma Lyslei Nascimento.
ESCOLHIDA PELOS TEMAS
A liberdade, valor que integra os direitos fundamentais
do homem, perpassa e funda o argumento na obra de Maria José de Queiroz. E com
ela Minas Gerais, sua história, sua cultura, os ideais libertários, que dão voz
a Joaquina, filha daquele que foi apelidado de “Liberdade”, mas está também
presente em A literatura encarcerada
(1981), A literatura alucinada
(1990), A literatura e o gozo impuro da
comida (1994), Os males da ausência
ou A literatura do exílio (1998) e Em
nome da pobreza (2006). Para além de Joaquina, a temática da liberdade
também atravessa toda a obra ficcional, como Sobre os rios que vão (1991) e Vladslav
Ostrov, príncipe do Juruena (1999).
É assim que Maria José de Queiroz, que gosta de afirmar
que não escolhe os temas de sua obra, mas, antes, é por eles escolhida,
demonstra que na composição de cada palavra a literatura se desenha, a música e
o ritmo se integram, e a palavra a liberta. “Através da palavra você chega à
liberdade. Temos o direito de falar. O fundamental na existência é a presença
da palavra”, avalia a autora, que encontra na fusão entre o ser e a sua
linguagem a essência da vida. “Você e a sua língua são um único, a língua é a
própria alma. É o que nos dá vida, nos traz para o outro. Você fala que gosta
de sua mãe, ou de um prato, a sua língua é o seu corpo pedindo socorro em
qualquer circunstância que esteja, quando você tem fome, quando tem solidão, em
todos os momentos, a sua língua está ali”, sustenta Maria José de Queiroz.
Para esta intelectual, que se emociona ao refletir sobre
o exílio, o encarceramento e a privação da liberdade, o grito da palavra que se
materializa em temáticas universais, articuladas num mosaico que bem
constituem uma enciclopédia cultural dos países de língua portuguesa e
espanhola da América. Ao percorrer todas essas paisagens, é a Minas que Maria
José de Queiroz sempre retorna. É assim que, em 1971, em Paris, discorreu em
Como me contaram:
“(...) Mas no fim de cada estrada
Minas me espera, de alcateia.
Na esquina de mim mesma entre calle street strasse e
boulevard,
no agudo da incerteza,
da angústia, do desassossego,
Minas me diz: presente!
Olhos fechados, livre de todo medo,
os músculos me ensinam montanha, ferro e aço:
regresso às minhas veredas.
No sertão alucinado a paz se restabelece.
Minas existe.Vivo de sua herança: ilesa.”
É uma literatura que desafia. “Pela densidade da história
que está sendo contada, pelo tecido de vozes que constroem o texto, vários
escritores em vários tempos sendo trançados, pela profunda pesquisa – ela
demora oito, 10 anos para lançar um livro. Por tudo isso, é uma autora que
exige coragem”, comenta a professora Lyslei Nascimento. “É a maior escritora
brasileira viva. Com a vantagem de que é tão ensaísta quanto ficcionista, uma
poeta. Tudo o que faz é com perfeição. Agora não é uma escrita que se lê e traz
conforto. Ao contrário, é uma escrita que desperta para as coisas, para o
mundo. É uma escritora que incomoda”, resume Lyslei Nascimento. E assim como
Carlos Drummond de Andrade, é uma literatura para fazer dormir as crianças e
acordar os homens. Das montanhas e para além delas.
ENTREVISTA/MARIA JOSÉ DE QUEIROZ ESCRITORA E ENSAISTA
“A língua é a própria alma”
Como a senhora escolhe as suas temáticas?
Não escolho. Elas que me escolhem. Eu, às vezes, estou
escrevendo e me vem aquela ideia de escrever alguma coisa sobre isso ou aquilo
e se transforma posteriormente num livro. Agora, há assuntos que estão dentro
de mim. As coisas que tenho raiva, como as prisões, estudei os prisioneiros
políticos.
Como foi a inspiração para escrever Joaquina?
A Joaquina é diferente por causa do nosso herói. Não há,
nem nunca houve um herói como Joaquim José da Silva Xavier. A filha dele entrou
na minha vida por causa da mãe dela, que quis ter um filho que fosse de um
herói. Dizem que a avó de Joaquina dizia: “Que absurdo você com essa criatura?
Pensar que vai haver liberdade, não há possibilidade, o país é dos portugueses,
somos colonizados”. Ela achava as ideias de Tiradentes absurdas. O tema me
escolheu porque não há nada mais fundamental em nossa existência do que a
liberdade.
Entre os ensaios que a senhora escreveu, um deles vai ser
relançado, Literatura encarcerada. A
literatura liberta?
A literatura de dentro da prisão é a literatura da
liberdade. Através da palavra você chega à liberdade. Você pode falar o que
você quiser. Temos o direito de falar. O direito de reclamar e o direito de
protestar. O fundamental na existência é a presença da palavra. E é com a
palavra que se mobiliza para a ação, que vou conquistar o mundo. Libertas quae sera tamen. Liberdade
ainda que tardia. Através da palavra, nós, em Minas, começamos. E veja a beleza
da Inconfidência Mineira. A conjura é articulada também por aqueles
intelectuais que foram estudar em Lisboa. Isso é ainda mais bonito. Eles se
revoltam com aquele país que lhes deu a possibilidade de estudar e lutar por
nossa liberdade. Foi em Portugal onde aprenderam a ler e a escrever. Isso dá
aos portugueses também a honra de ter tido um povo como o brasileiro, que
recebeu essa língua que não é língua de ninguém mais nesta grande América. E
podemos dar ao mundo esse exemplo de que também se faz boa literatura e poesia
nessa língua que poucos países sabem falar.
De toda a sua obra, qual lhe deu mais prazer de
escrever?
Foi A literatura do
exílio ou os Males da ausência. Foi um grande ensaio de 715 páginas. Foi
uma pesquisa que tinha começado nos EUA, depois prosseguiu na França, na
Alemanha. Foi a primeira, a mais importante, e foi o tempo em que eu mais
sofri. A minha própria mãe vinha e me via no escritório chorando. Você se
afastar de sua terra, de seus entes queridos. Ser exilado é terrível. Exilado
você perde o sentido de sua localização no mundo. Você não sabe mais em que
situação se encontra, que língua você ouve. Foi o livro que mais me marcou por
aquilo que sofri em fazê-lo. A mais terrível das solidões é a do exílio, da
pátria. Monteiro Lobato sofreu isso. Quando exilado na Argentina, ele estava
tão infeliz, que um dia ouviu um casal falando português. Saiu correndo atrás
dele, pois a saudade da língua portuguesa era grande. Como existe entre você e
a sua língua uma amizade grande com a própria língua. Tanto que você vai gostar
de algumas palavras mais do que outras. Eu mesma às vezes converso com elas e
digo: ‘Sai pra lá palavra, você é muito antipática’. Mas você e a sua língua
são um único, a língua é a própria alma. É o que nos dá vida, nos traz para o
outro. Você fala que gosta de sua mãe, ou de um prato. A sua língua é o seu
corpo pedindo socorro em qualquer circunstância que esteja, quando você tem
fome, quando tem solidão, em todos os momentos, a sua língua está ali. A coisa
só existe a partir do momento em que há a palavra. Sem ela, não existe. O mundo
é feito de palavras. A palavra é ação, é vivência, é a vida interior, é gostar
mais de música do que de literatura, ou gostar de ambas, pois literatura sem
música não é literatura. A língua deve ser ritmo, daí a beleza da língua. Cada um
de nós tem um ritmo de fala. Você reconhece a fala do outro por causa do ritmo.
Somos seres que temos um ritmo para nossa própria vida, uma forma de andar na
rua.
Literatura e música são faces da mesma moeda?
Essa moeda se chama arte. A arte se envereda pela arte da
palavra, que tem de ter um ritmo, tem de ter música, senão fica horrível.
Que tipo de pesquisa exige a sua obra?
É preciso que você pegue e veja a bibliografia para
entender o que precisa ler para enfrentar um livro como aquele. Sempre li muito.
O ensaio sobre a literatura no exílio foram oito anos. Estive no maior arquivo
do exílio do mundo, a biblioteca da Alemanha.
Ano novo, vida
nova (1971)
Embora escrito em português, o romance em primeira pessoa
é quase bilíngue. A personagem-narradora Patrícia, uma mineira envolvida num
caso amoroso com um francês casado, reflete sobre a possibilidade de escrever a
sua história de amor. O duplo registro, ora em português, ora em francês,
confere ao texto um caráter de charada, de enigma, de metalinguagem. A
história, ricamente composta pelos cenários das cidades europeias,
especialmente Paris, traz outros detalhes importantes recriados com requinte,
como a referência à culinária e à literatura.
Homem de sete
partidas (1980)
A narrativa é construída em roteiros para as terras
sul-americanas. Bernardo é um personagem que busca o tio desaparecido para lhe
desvendar a vida e conhecer-lhe as aventuras. A partir desse pretexto, a
escritora navega sobre os campos da América Latina em mapa riscado para
conduzir o narrador e leitor a uma viagem por entre as andanças de um
andarilho.
Joaquina, filha
do Tiradentes (1987)
Por meio da narrativa da filha de Tiradentes – até então
ignorada pela história – Maria José de Queiroz reconstrói em
Joaquina, filha do Tiradentes a vida colonial cotidiana do século 18. A
Inconfidência Mineira é o contexto em que ficção e história se articulam e
revelam o melancólico destino da herdeira do “sal e da infâmia”, do
condenado de Vila Rica. Esse romance histórico constitui um
percurso consciente e intelectualmente elaborado pela romancista, em trama que
privilegia o passado de Minas.
Os males da
ausência ou A literatura do exílio (1998)
A literatura do exílio é ensaio de 714 páginas, resultado
de oito anos de pesquisa da autora, movida pelo desafio de recuperar o percurso
de dores e sofrimentos da própria história do homem, em suas dramáticas e,
pelas circunstâncias, inevitáveis escolhas. De Adão e Eva expulsos do paraíso é
longo o itinerário de exílios e males da ausência, que percorrem com o
desterro, o círculo do inferno, de dores e ausências.
O livro de
minha mãe (2014)
Nesta obra, Maria José de Queiroz recupera a infância, a
perda do pai, ainda criança, a fibra e a coragem da mulher forte que foi
Honória, sua mãe. A poesia, a música, as histórias de Minas – eis o elo que une
mãe e filha, em simbiose. Inscrita na longa tradição de escritores que, no
luto, tentam explicar a grande falta que é a morte da mãe, a autora ecoa os
fragmentos de Diário do luto, de Roland Barthes, em que o escritor trata de
“uma dor absurda, impossível de contornar”. De forma mais expressiva, entoa, em
dueto com Alberto Cohen, autor de Le
livre de ma mère, “uma noite com palavras”, a celebração da mãe, de todas
as mães.