terça-feira, 24 de julho de 2012

Na prisão com Paulo e Silas

Na prisão de Filipos, segundo os Atos - 16, 23-40, Paulo e Silas foram lançados numa cela obscura e malcheirosa, situada sobre a acrópole. Os prisioneiros, com os pés cerrados em sólido bloco de madeira, o pescoço e as mãos algemadas, encadeados a um gancho encravado no muro, mal se moviam. Ainda feridos, e em sangue, Silas e Paulo ouviam, sentados, o confuso e monótono rumor dos demais condenados: blasfêmias, pranto, gritos e arrastar de grilhões.

Um fato insólito, sucedido durante sua permanência na prisão filipense, merece do apóstolo narração cuidadosa.  No meio da noite, depois da rendição da sentinela, irrompe, tímido, conhecido cântico cristão. Denso e triste, aos poucos se avoluma. E em crescendo, jubiloso, explode. O autor dos Atos esclarece que "segundo a disciplina eclesiástica do 3o. século, os antidos cristãos tinham o hábito de levantar-se à noite para rezar. E a razão profunda de tal procedimento arranca da tradição, transmitida de pai a filho - 'À meia-noite, levanta-se, lava tuas mãos e ora! 'É que, nessa hora, a criação inteira fica imóvel para louvar o Senhor; as estrelas e as árvores, os rios e os anjos e as almas dos justos, todos cantam louvores ao Senhor'. A Silas e Paulo parecia inaudito se convertesse em cântico harmonioso o coro do ódio e rancor entoado à luz do dia. E enquanto se admiravam da súbita mudança, um milagre inesperado põe fim à música: um forte tremor, de terra abre as portas das  celas, faz cair dos muros algemas e cadeias. Paulo e Silas nele vêem a mão de Deus. Não se valem, contudo, da sua clemência. E impõem ordem no presídio. Nenhum dos prisioneiros procura fugir. Voltam todos, segundo o Codex Bezae, às celas escuras. Com duas exceções: Silas e Paulo. Aos quais se permitiu caminhar livremente até o pátio. O carcereiro neles reconhecera os mensageiros de um deus superior e poderoso e autores, prováveis, do tremor de terra.

QUEIROZ, Maria José de. A literatura encarcerada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. p. 25. 

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Amor

 Cantabile

Com a boca escreves poemas
e com a voz os ensoas.

Letra por letra soletras
a tua coita de amor.

Guaiado te proclamas
nos suspiros prolongados,
nas sílabas lhanas.



E tatibitate repetes,
os lábios colados à pele,
a tua cantiga de amor.

Os versos crescem,
encadeiam-se,
e em estrofes se alargam.

Aos dedos, o ofício
de espertar as cordas
sensíveis ao dedilhado.

Música e letra se unem
para elevar ao amor
hino de carne e palavra.

Rimas em colcheias,
aféreses em quiálteras,
tudo transportas à escala.

Compasso por compasso
inventas canção de amor
no mais raro teclado.
Em sustenido maior
vivemos noite larga:
invenções a duas vozes,
fuga e contraponto,
acordes temperados.

À primeira luz do dia
dissipam-se no ar
seus últimos harmônicos
- cadência plagal,
exata.

De tua boca evolo,
volátil:
sou poema
cantabile.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 25.