domingo, 23 de dezembro de 2012

Rol de signos


Para, olha, medita:
o mundo,
carta de enigmas,
abre aos teus olhos
extenso rol de signos.
No espelho das águas,
Narciso e o mito;
no profundo mar, submerso,
o sonho imperecível de Ícaro;
na penha tenebrosa,
Prometeu acorrentado
à eternidade do delito.

O rosto e a imagem
- perfil ambíguo,
ele e eu, eu e ele, confundidos;
a fuga ao chão,
na vertigem das asas livres,
a envergadura em equilíbrio;
o raio aprisionado
na frágil argila
- risco tosco,
forma indecisa...
assim começa,
e recomeça,
nosso itinerário de equívocos.

A libélula ao redor da luz,
o sapo e a víbora,
a árvore  da ciência,
o canto do pássaro
que cabe, eterno,
no pulsar do sangue,
entre dois versículos da Bíblia,
as cores todas do céu,
o disco de Newton
- do amarelo ao rubro,
dentro do branco de Leonardo,
inicial e receptivo...
Tudo é enigma.
A esfinge hierática,
quimera voraz,
vela à porfia:
mistério denso
nos chama
do fundo as suas pupilas.
Seu sexo, inviolado,
negros perfumes transpira.
Ah, tentação de possuí-la!

Belo Horizonte, outubro, 1978.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1982. p. 13-14.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Miudezas

Se repito igualzinho igualzinho, nem tem mais graça! O encanto do caso está nessas miudezas que vêm e que vão e que tanto podem enfeitar história triste como história alegre, acontecida deveras ou inventada só - reclamava Itacolomi. Eu, contudo, exigia fidelidade da imaginação à versão original. E não arredava daí a teimosia de ouvinte minuciosa. Queria também que as miudezas aparecessem na hora certa e no lugar conhecido. Quando ele vacilava, eu puxava da sua língua e da memória [...].

QUEIROZ, Maria José. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Marco Zero, 1987. p. 25.

domingo, 14 de outubro de 2012

A dor de pertencer à humanidade

Amargurada, desci à Amazônia com uma frase de Cocteau na cabeça: "J'ai mal d'être homme." Também eu carrego como peso a dor de pertencer à humanidade. Como é que pode haver tanta gente ruim no mundo? Será que pertencemos, todos, ao mesmo gênero humano? Ao fazer essa pergunta a Ostrov, já em convalescença, em casa, ele me respondeu:
- Tenho minhas dúvidas. Não conhecendo a frase de Cocteau, contentava-me em repetir o verso de Neruda - "Sucede que me canso de ser hombre" -, bem próximo, no seu pessimismo, da frase que me citou. Mas não creia que alguém escape da miséria humana. Ninguém é perfeito. A ruindade, os vícios, o crime são nosso patrimônio comum.

QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Ostrov, príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 159.

sábado, 6 de outubro de 2012

Das uvas e dos dentes dos filhos

Quando contei à comadre Elvira que os meus escrúpulos de consciência não me deixavam dormir, ela não se admirou. Era pior que eu. Em pecado grave, mortal, não amamentava os filhos. Temia que Deus punisse o inocente para castigá-la. Perguntei-lhe de onde tinha tirado isso. Da Bíblia. Da Bíblia? Pois não está escrito que "Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados"? Fiquei horrorizada. Não sosseguei enquanto não obtive do padre Arduíno uma boa explicação para a sentença bíblica. E corri a participar à comadre que podia amamentar o coitadinho do afilhado sem susto: as uvas verdes nada tinham a ver com o leite materno. Helena, sua irmã, me contou que Elvira tinha mania de pecado.

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 65.