sábado, 9 de fevereiro de 2013

Imigração interior

Hannah Arendt comenta que o nome - emigração interior, é, já de si, ambíguo. Óbvio. Porque aquele que emigra, emigra para fora, é o emigrante. O seu antônimo é imigrante. Mas para livrar-se de censura, ou para justificar-se ante as patrulhas ideológicas do após-guerra, convinha adotar o mesmo substantivo - emigrante, e o coletivo correspondente - emigração, com que uma parte dos habitantes - temerários, comunistas ou inconsequentes, passara a ser conhecida. Que fazem os "resistentes"? Juntam aos substantivos o adjetivo "interior". E pronto. Acontece que muita gente  que colaborou ou compactuou com o regime buscou abrigo debaixo desse paradoxo engenhoso.


QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou A literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 595.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Chocolate

 

Passam-se os anos. Passam-se os séculos. E o chocolate não perde o seu visgo. "Visgo de agarrar fêmea", diz Guilherme Figueiredo. E continua: "A Inglaterra, graças à colônia da Costa do Ouro, a Alemanha, a Suíça, a França tomaram conta da industrialização do filtro erótico". Informado acerca do perigo que representa para as coronárias, o escritor brasileiro comenta: "Veneno terrível, criador de hábito, vingança do Novo Mundo em revide às mazelas venéreas recebidas do Civilizado Mundo Europeu, mas perigoso do que a coca degenerante e o trabalho cancerígeno, porque nem mesmo pertence hoje à gastronomia: pertence à glutonaria." (FIGUEIREDO, Guilherme. Chocolate, vício solitário. In: _____. Comes e bebes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1978. p. 124.)


QUEIROZ, Maria José de. A América, a nossa e as outras: 500 anos de ficção e realidade. Rio de Janeiro: Agir, 1992. p. 81.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Rol de signos


Para, olha, medita:
o mundo,
carta de enigmas,
abre aos teus olhos
extenso rol de signos.
No espelho das águas,
Narciso e o mito;
no profundo mar, submerso,
o sonho imperecível de Ícaro;
na penha tenebrosa,
Prometeu acorrentado
à eternidade do delito.

O rosto e a imagem
- perfil ambíguo,
ele e eu, eu e ele, confundidos;
a fuga ao chão,
na vertigem das asas livres,
a envergadura em equilíbrio;
o raio aprisionado
na frágil argila
- risco tosco,
forma indecisa...
assim começa,
e recomeça,
nosso itinerário de equívocos.

A libélula ao redor da luz,
o sapo e a víbora,
a árvore  da ciência,
o canto do pássaro
que cabe, eterno,
no pulsar do sangue,
entre dois versículos da Bíblia,
as cores todas do céu,
o disco de Newton
- do amarelo ao rubro,
dentro do branco de Leonardo,
inicial e receptivo...
Tudo é enigma.
A esfinge hierática,
quimera voraz,
vela à porfia:
mistério denso
nos chama
do fundo as suas pupilas.
Seu sexo, inviolado,
negros perfumes transpira.
Ah, tentação de possuí-la!

Belo Horizonte, outubro, 1978.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1982. p. 13-14.