sábado, 22 de agosto de 2015

Que lhe posso eu dizer
















Que lhe posso eu dizer
que já não lhe tenha dito
em dicção de claro timbre
e verbo de grave sentido?

Consulte a memória
- sua fiel ancila.
Recupere vida e tempo,
convença-se:
eis-me a seu lado, cativa.
Milagre de eternidade,
permeada a seu ser,
estrela e mito.

Mas, se insiste,
confesso-lhe,
repito:
padeço funda saudade,
a lembrança me martiriza,
povoam-me incertezas,
dissipo-me entre amigos.

É tarde.
Escute-me:
de minha palavra
mal se ouve o eco
e a saudade já se faz grito...

Paris, 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. p. 72-73.

domingo, 16 de agosto de 2015

Receita para fabricar outono


"Tudo (entre um dia e o outro dia) por um velho capricho do relógio e, 
outro, da geografia".

(Cassiano Ricardo)

Paris: as duas margens do Sena sugerem rivalidades.
O Pont Neuf as elimina em mágica transcendência.

O mito passeia disponibilidade vaga
entre as duas margens:
éramos dois.

O tempo e seu ponteiros
mediram nosso verbo de dilatada ressonância. 

De passadas primaveras, ecos apagados,
vestígios dispersos de caminhos percorridos,
dualmente.
Hoje, o sursis.
Amanhã, o inverno monologal.

Paris, outono, 1969.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1971. p. 13.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Não há dor que resista a essa beleza

A pouco e pouco o sol apareceu. E o calor começou. A subida era difícil. Durante umas duas léguas, num caminho áspero e escorregadio, só fizemos subir. Quando chegamos ao topo do monte - o chapadão da Matutina -, pudemos descortinar toda a estrada feita, desde o arraial onde pousáramos até as montanhas mais distantes, que encerravam, em círculo, o imenso vale.
- Não lhe disse que a dor passaria quando estivéssemos na estrada? Não há dor que resista a essa beleza, Joaquina. 

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Marco Zero, 1987. p. 161.

domingo, 19 de julho de 2015

Diante do fruto















A vida a que fujo,
obstinadamente,
ei-la nos teus olhos,
insistente.

O corpo que ignoro,
indiferente,
ei-lo no teu desejo,
sarça mordente.

É tempo de tentação.
Salve-nos a serpente.

Belo Horizonte, fevereiro, 1974.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1974. p. 68.