sexta-feira, 27 de março de 2015

Montanha













Montanha: privação de horizontes
ou nostalgia das alturas?
Ao longe, o convite da distância
- âncora, lançada ao vale,
sombras, lago, pântano e rio.
No pico, o ideal da colina,
intangível,
No mar, sede inalterada,
o embarque e a partida,
água inviolada, transparência ignota,
velas e naufrágio, praia e porto:
o desconhecido.
A montanha, entre colina e pico,
soluça mediocridade,
invencível.
Prisioneira do solo,
ao céu eleva prece,
duradoura,
inaudita.
A nostalgia das alturas
fez-se pedra
e granito.
Montanha, suspiro da terra
condenada ao chão e ao barro.
Montanha, gesto e grito.

Minas Gerais, 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra, 1974. p. 50-51.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Música

Foges.
Persigo-te. Em vão.
E meu ouvido corre
em pós de ti e do som.

E as notas partem
- da máxima à semifusa,
dançam,
multiplicam-se em quiálteras,
e a linha se mantém, contínua,
em contínua fuga.



Melodia, harmonia e ritmo
fundem-se no mesmo fio.
Porém não descubro
que fazer para reter-te,
obrigando-te a permanecer
- não em fermata ou coda,
íntegra, perfeita,
sem monotonia nem abuso.
Mas, mal recomeço o canto,
abrevias a carreira louca.

Comigo, a canção.
De ti resta-me o eco,
de frustrada ressonância.

- Duração que tento reduzir a presença
e que me escapa, escapa,
sempre.
E me foge,
e me ilude.
- Frágil ilusão que me coloriu os ouvidos.
E deliu-se,
difusa.

Lisboa, 1971.


QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra, 1974. p. 62-63.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

O futebol não é apenas paixão

Que se queime a bandeira nacional mas que se respeitem as cores alvinegras! Em Minas, com o Atlético, passa-se o mesmo. Galôo! é grito de guerra. Nosso instinto de território manifesta-se no gramado, tanto quanto nas arquibancadas da torcida apaixonada. Isso é Brasil: a música das charangas substitui as marchas militares. Fazemos vigília cívica todo fim de semana. À sanha dos jogadores transferimos nossa vocação heróica. Nos dois lados do campo decidem-se nossas batalhas. A rede balançada, a bola na trave despertam distintamente, nos dois bandos, a euforia da vitória e a emoção da derrota. Nas pernas dos jogadores correm também nossos sonhos milionários. Porque o futebol não é apenas paixão, nossa arena e nosso circo, nossa purga semanal. Ele é também o sursis da pobreza e da fome de cem milhões de miseráveis. A loteria esportiva afugenta, de sexta a domingo, o fantasma da penúria dos nossos lares. Somos todos ricos de disponibilidade. Até que a segunda-feira nos devolva às inquietudes habituais do pão e do salário.

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 25.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Quando morre o amor

Veronica Veronese, 1872, Dante Gabriel Rossetti, 1872.

"Chega um dia em que o amor, que era infinito de repente se acaba, de repente."

(Thiago de Mello)


Quando morre o amor
algo em nós também morre.
Fica o vazio da ausência
daquele que nos deu vida
e em nosso altar oficiou
rito de duração interina,
e a morte certa, aflitiva,
à sua partida deixou.

Recuperado o equilíbrio
do aqui, agora, eu mesmo,
completos logo nos vemos:
cabeça, tronco e membros.




Contudo não nos socorre
o outro que já não somos
privados do que tivemos
e entre sonho e pesadelos
em dias e noites perdemos.

Se o amor pontificou
tempo e vida nos levou.
Furtou-nos gestos, esgares,
calma, sorrisos, alarmes.

Quem jamais se verá inteiro
na paz ameaçada
se em momentos de alvoroço
promove dano maior
em celebrar o bem passado
do que em destruir seus despojos?

Paris, inverno de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1972. p. 68-69.

domingo, 18 de janeiro de 2015

A arte da sedução em tempos de guerra

"Odalisca", 1921, Henri Matisse.
A arte da sedução não é tão simples quanto se imagina. Principalmente se o rival, mantido à distância, participa da intriga e contribui para o seu bom êxito. 

Claro que houve finta. E com a cumplicidade da vítima. Para que a honradez e os bons princípios prevalecessem. O cornudo saiu invicto do episódio. E a bela lituana prestou valente serviço à causa nazista. Ela sabia que o amor, em tempo de guerra, também é arma. E usou-a com mestria. Para meu prazer. Nosso, talvez... Não, não quero crer que Hitler interferisse no arrebatamento da sua entrega. Nem Goering dela exigiria tamanha assiduidade nem tais caprichos de devoção a Eros.

QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Ostrov: príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 85.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Indiferente ao frio

"Dirce", 1897, Henryk Siemiradzki.








"Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti."

(Cecília Mereles)



Indiferente ao frio
resisti a plural inverno.

No calor de íntimos anelos
fundi a algidez
da neve e do vazio.

Mas de chama vacilante
o sedutor prestígio
incendiou-me os olhos
atraiu-me à luz
despertou-me secreto anseio
de alteridade revestido.

Curiosa e tímida,
entronizei-a,
atenta embora
ao iniludível risco.

Ingênua e submissa
celebrei-a,
rendida ao sortilégio
de fascinantes ritos.

Hoje, entre gelo e granizo,
a alma confundida,
desvivo desequilíbrios,
estarrecida.

De todos os caminhos
fiz encruzilhadas.
Em lúcida aliança
persegui desvios.

Agora, ante o fatal delito,
que me acompanhem
a necessário exílio
artes de fina essência,
olhar e gesto altivo,
neves de rigoroso inverno,
muita saudade, que frio!

Paris, 9-4-70

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 63-64.