sábado, 27 de janeiro de 2018

Vladslav Ostrov: Príncipe do Juruena, 1999


QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Ostrov: príncipe do Juruena.
Rio de Janeiro: Record, 1999. 303p.
 
No romance, Úrsula Bock, uma funcionaria alemã de uma firma importadora de madeira, aves exóticas e plantas ornamentais, apresenta ao leitor Vladslav Ostrov, um aventureiro russo de origem nobre que, entre riscos e desafios, emerge da história do século XX numa biografia memorável. Ao emigrar para a Argentina, Vladimir salva bens de família que o possibilitam ser acionista de um banco polonês em Buenos Aires. Da Argentina à Colômbia e depois para o Brasil, na região amazônica, esse homem culto, de posses e de boa educação, faz da selva o seu reino e entre a população brasileira estabelece seus negócios e vive amores.

“Um amigo meu, dado a esoterismo e fenômenos parapsicológicos, não teve dúvida em classificar esse decalque inexplicável de Olov a Ostrov, ou vice-versa, como "fulgurações da imaginação". Quando lhe perguntei o que entendia por isso, ele me respondeu que são como spots ou clarões que nos põem em contato com tudo o que se passa no universo. Uma espécie de sexto sentido, ou intuição criadora, que nos transporta a formas de conhecimento total. No entanto, imperfeitos que somos, não atingimos o absoluto: nosso conhecimento padece intermitências. Não há revelação total, mas parcial. Por isso, talvez fosse mais correto falar de relâmpagos de vidência ou breves iluminações. A criação do príncipe Olsztyn, personagem de ficção, entretanto vivo em alguma parte do globo, seria um excelente exemplo de como isso ocorre: só me haviam chegado, mercê de breves iluminações, certos episódios de sua vida. O demais continuara oculto no magma universal. Quando se rompe, em súbitos clarões, o véu que o encobre é que acontecem as chamadas "fulgurações da imaginação". (p. 33).


“Era amor à primeira vista. Disso eu não suspeitava. Ainda não. Acreditava-me infenso a tais fraquezas. Cultivava, desde os últimos anos na Argentina, uma misoginia mal resolvida. Aborrecia-me o eterno feminino. Mas Brigitte não era como as demais mulheres... Descobri, passado o frenesi da paixão, que não só o eterno feminino existe, sim, como uma mulher é todas as mulheres. E talvez seja isso o eterno feminino. Quem conhece uma, conhece todas elas. A paixão é que é diferente. É o sujeito que reinventa o objeto amado. Embora ele seja sempre o mesmo...” (p. 84).

“A arte da sedução não é tão simples quanto se imagina. Principalmente se o rival, mantido à distância, participa da intriga e contribui para o seu bom êxito. Claro que houve finta. E com a cumplicidade da vítima. Para que a honradez e os bons princípios prevalecessem. O cornudo saiu invicto do episódio. E a bela lituana prestou valente serviço à causa nazista. Ela sabia que o amor, em tempo de guerra, também é arma. E usou-a com mestria. Para meu prazer. Nosso, talvez... Não, não quero crer que Hitler interferisse no arrebatamento da sua entrega. Nem Goering dela exigiria tamanha assiduidade nem tais caprichos de devoção a Eros.” (p. 85).

“Amargurada, desci à Amazônia com uma frase de Cocteau na cabeça: "J'ai mal d'être homme." Também eu carrego como peso a dor de pertencer à humanidade. Como é que pode haver tanta gente ruim no mundo? Será que pertencemos, todos, ao mesmo gênero humano? Ao fazer essa pergunta a Ostrov, já em convalescença, em casa, ele me respondeu: — Tenho minhas dúvidas. Não conhecendo a frase de Cocteau, contentava-me em repetir o verso de Neruda – "Sucede que me canso de ser hombre" –, bem próximo, no seu pessimismo, da frase que me citou. Mas não creia que alguém escape da miséria humana. Ninguém é perfeito. A ruindade, os vícios, o crime são nosso patrimônio comum.” (p. 159).
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Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Sobre os rios que vão (1990)


QUEIROZ, Maria José de. Sobre os rios que vão.
Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. 338p.

O romance Sobre os rios que vão narra a história de uma família de origem judaico-búlgara no interior do estado de São Paulo. O enredo gira em torno do jovem Joel Levi que, para tentar burlar os impasses da identidade e da memória judaica, troca seu nome para Jari Leite. Estão no horizonte dessa trama a sua relação com o passado de sua família e, por extensão, com a sua herança sefardita. Babilônia, nessa história de exílio, é, no Brasil, metafórica, ou seja, corresponde aos vários locais onde suas personagens vivem suas histórias: a cidade de São Paulo, após a imigração de Fatuel, o pai de Joel; o interior paulista, São Godofredo, onde ele constituiu família e se tornou um luthier; para Joel, também a cidade de São Paulo de seus estudos e do tio Mattei, depois sua experiência na Alemanha e na França. Assim, essa “Babilônia” transmuta-se num lugar imaginário, na verdade um estado de espírito no qual lamentam-se os males da ausência.

“Sem meios para me instruir, aprendi, em casa, com meu pai, que é marceneiro, a trabalhar a madeira. E o que mais queria era possuir um violino. Meu sonho era ser violinista. Deus não permitiu que eu o realizasse. Não me queixo. Toco um pouco e transferi para a minha modesta fábrica de instrumentos a paixão que sempre senti pela música. Acho que poder fabricar o próprio instrumento aumenta o prazer de tocá-lo. A minha impressão é que ao executar uma peça eu retiro de dentro do violino os sons e os harmônicos que eu mesmo pus lá dentro.” (QUEIROZ, 1990. p. 102).

“Nunca houve, nem haverá, uma cidade como Berlim. Tive a impressão de que estávamos na véspera do fim do mundo. Abraham me repetiu um dia a frase de uma amiga sua: "Aqui, uma mulher custa um cigarro e um quilo de pão, um milhão de marcos". Mas não era só a mulher: o homem também valia pouco. O que custava caro era a comida. Num cartaz de cabaré, li e anotei esta frase formidável: "Berlim, teu parceiro de dança é a morte". E a morte veio com a guerra. Tudo o que aconteceu depois você já sabe. Faz parte da história: os conflitos entre nazistas e comunistas, os desfiles de rua e o fatídico 10 de maio, quando Goebbels e os estudantes lançaram ao fogo milhares de de livros. Quando a Alemanha foi invadida eu já estava no Brasil.” (QUEIROZ, 1990. p. 173).

“Restava saber se era isso que desejava... que parte cabia ao Brasil no seu coração? E na sua inteligência? O de que gostava, e que curtia aqui, não tinha preço. Nem nome. Era a alegria de respirar o ar de casa, de cheirar a roupa de cama lavada uma vez por semana, de ouvir gente falando português, de ler os jornais pendurados do lado de fora das bancas, de admirar o riso espontâneo que ainda enfeitava, apesar dos pesares, o rosto das pessoas. Mais desdentadas que fossem. Mas... e as agressões que sofria ao descer à rua? Os mendigos deitados nos vãos das portas, os pivetes em corridas desabaladas, fazendo acrobacias nas traseiras dos ônibus, as sarjetas imundas, as valas negaras a céu aberto, os passeios ocupados por carros e vendedores ambulantes, a desobediência às leis e às regras miúdas da convivência... Ficaria livre de tudo isso. E de muito mais. Até da irritante resignação dos brasileiros diante da corrupção, da injustiça, da fraude, da impunidade e da demagogia dos políticos. Só que a inconsciência, ou talvez a pouca seriedade com que se comportam, não é para desprezar-se: se não a tivessem, como sobreviveriam aos trancos da miséria, da calamidade e da desigualdade social? A inconsciência aqui é uma forma de defesa...” (QUEIROZ, 1990. p. 336).

Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Joaquina, filha do Tiradentes, 1987, 1991, 1997

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes
São Paulo: Marco Zero, 1987. 297p. 
(Inspiração Liberdade, Liberdade, que estreou dia 11 de abril de 2016, na Globo)
QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. 258p. (1991)
 

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. 356p. 
(Versão Integral com posfácio da autora)

Em Joaquina, filha do Tiradentes, Maria José de Queiroz constrói, além de um requintado painel da cartografia de Minas Gerais, uma rigorosa reinvenção da vida cotidiana do século XVIII por intermédio da narrativa da filha bastarda de Tiradentes. Artista e artesã da palavra, como salientou Pedro Nava, a escritora deixa confluir ficção e história em sua escrita. Assim, ela arma, junto ao episódio da Inconfidência Mineira, pano de fundo da narrativa, um texto outro que põe em evidência o melancólico discurso da herdeira do “sal e da infâmia” do condenado de Vila Rica. Joaquina, alheia ao jogo de fuga, talvez possível para o esquecimento do nome do pai, aparece no cenário da literatura brasileira pelas mãos hábeis da romancista. Chama a atenção do leitor a composição dos ambientes, os pormenores evocados pela memória da narradora – “pedrinhas, seixos, pepitas de ouro, diamantes e outras riquezas” – todas essas coisas roídas pelo cupim do tempo, filigranadas pelo esquecimento da história. No romance, a filha de Tiradentes deixa de existir numa nota quase invisível nos Autos da Devassa e vem, ficcionalmente, seduzir o leitor numa apaixonante narrativa. Esse romance histórico perfila-se sob a égide de um percurso consciente e intelectualmente elaborado da autora que insinua uma constante tensão entre a ficção e a história. O que poderia ser uma lacuna intransponível torna-se, assim, um tecido cuja intrincada disposição dos fios aponta para uma trama que privilegia o passado de Minas como um tempo propício à invenção e à construção ficcional. A história dos sentidos, dos cheiros, do olhar torna-se, também, em Joaquina, filha do Tiradentes, belíssima narrativa de dor e melancolia. Tudo muito bem tramado, à luz hesitante da candeia da História.

Trailer do documentário Maria José de Queiroz: artesã da palavra, 2003, de Lesle Nascimento: https://www.youtube.com/watch?v=Vj6XSXKcRWM&feature=youtu.be

“Sei de memória, não só a condenação mas também as inesgotáveis formas por que se expressam o desprezo, a humilhação e a desonra. Conheço as mentiras da história, a hipocrisia dos patriotas, a peçonha das letras escritas, os rumores malignos, o escárnio e o medo. Aprendi, desde menina, que a vergonha da origem bastarda fere menos, muito menos, que a infâmia decretada por sentença e consagrada pela fraqueza dos covardes. Não, o tempo não lhe consumiu o corpo amaldiçoado. Vejo-o agora, vejo-o aqui. E sua cabeça, exposta ao opróbrio, seu rosto – tão semelhante ao meu, inicia a eternidade da pena crismando, no golpe de ódio do poder, o gesto de misericórdia do carrasco. Vejo-me nele. E ele, em mim, abre os olhos para a vida e para a desgraça que nos cerca. Um dia, quem sabe?, ele os abrirá para a glória... De ignomínia em ignomínia, nada me salva: nem o futuro nem a gratidão da pátria. Suas palavras talvez pudessem resgatar-nos – a mim e a minha mãe – do frio do esquecimento; ele, contudo, jamais as proferiu. Nada nos resta. Nada me resta. No espelho do quarto, nas águas do rio, nos dedos que me apontam, o seu rosto me persegue. Sempre. E esse silêncio! No entanto, as palavras... De que valem as palavras? O que dele me ficou, deveras, foi a infâmia. No abandono das horas tardias, quando a paciência esgota, cansadamente, a resignação e a calma, é o sangue que me fala. A ameaça que vem de fora, dia claro, nos gestos obscenos, nas vozes afiadas, troca-se em tortura: sou eu, noite adentro, meu verdugo. E, de mim, já não fujo: recolho-me no meu corpo, duplamente condenado. A infâmia que mora no meu ventre conspira contra todos nós. Minha alegria é o silêncio das coisas quando a escuridão noturna adormece a vizinhança.” (QUEIROZ, 1997. p. 9-10).

“Nada passa nesta cidade. Tudo é sempre igual: as pedras da rua, a fachada das casas, as pontes, os chafarizes, as cruzes, os oratórios... Do Caquende até o alto das Cabeças, as caras são as mesmas, desde o tempo do Alferes. Só no Pilar vejo gente estranha: duas ou três pessoas chamam a atenção de todo mundo. Nas procissões, qualquer cara nova é olhada de través. E, agora, sobra, para nós também, esse olhar atravessado. Tem gente que bem que gostaria de me ver enforcada, na mesma corda que enforcou o Alferes. Como essas Pilatas.” (QUEIROZ, 1997. p. 18-19).

“Se não temos ouro... Que podemos oferecer à Soberana para os seus alfinetes? A cabeça do Alferes vale ouro. Muito ouro! Está cheia de ouro! As fundições do Reino vão fundir alfinetes de ouro para a Soberana. Para quê moedas? Com o ouro da cabeça do Alferes vão fundir alfinetes, infinitos alfinetes. Todos de ouro. A Soberana terá alfinetes para a sua cabeça, para as suas almofadas e para o seu coração. Sete alfinetes de ouro atravessam o seu coração. Ou o meu... Nem sei mais. Quanta desigualdade!” (QUEIROZ, 1987. p 155).

“Tivemos uma boa ceia: galinha cozida, toucinho, feijão e farinha de milho. A provisão de queijo, da fazenda de D. Rita, começou a ser servida. E o café, tão raro, como já sabíamos, foi bebido com o maior prazer. O telheiro, apesar de espaçoso, só nos defendia do vento, da chuva e das onças e lobos. Armaram-se redes e catres, acenderam-se fogueiras do lado de fora. A fumaça nos cegava a todos.” (QUEIROZ, 1987. p. 160).

A pouco e pouco o sol apareceu. E o calor começou. A subida era difícil. Durante umas duas léguas, num caminho áspero e escorregadio, só fizemos subir. Quando chegamos ao topo do monte - o chapadão da Matutina –, pudemos descortinar toda a estrada feita, desde o arraial onde pousáramos até as montanhas mais distantes, que encerravam, em círculo, o imenso vale.
— Não lhe disse que a dor passaria quando estivéssemos na estrada? Não há dor que resista a essa beleza, Joaquina.” (QUEIROZ, 1987. p. 161).

“Estendi as peças de roupa no quintal e continuei a abrir arcas e canastras. Deixei por último a canastra dos livros e papéis. Encontrei dois cadernos em que começara a rabiscar as primeiras letras, um caderno de Caligrafia, um livro de Gramática e um de História. Todos destruídos pelas traças. Havia ainda um embrulho com os dizeres: Para Joaquina, filha de Joaquim José. Abri-o. Mais livros e papéis. Os livros: Tratado de cirurgia dos pobres, Tratado das febres intermitentes, Elementos de medicina prática, Dicionário Francês e Latino de Medicina, Manual do moço praticante de cirurgia, Segredos das Artes e Ofícios, Conhecimento prático dos remédios, Enfermidades dos exércitos, Compêndio de Botânica, Conservação da saúde dos povos, Coleção dos remédios fáceis e domésticos, Compêndio de História Natural, Tratado de Mineralogia. Todos intactos. O papel, tratado com verniz e cera, protegera-os contra as traças e o cupim.” (QUEIROZ, 1987. p. 191).

“O Mal só vem daqueles que nada fazem por mal. É sempre assim. Enfim, nada mais sei para ensinar a você. Sua educação está terminada. E sua instrução já é de sobejo. Você pode levantar os olhos. Pode levantar a voz. Eu estou cansada. Muito cansada. Passei a vida com os olhos baixos. Conheço as pedras das calçadas de Vila Rica e de Antônio Dias. Conheci as tábuas e o chão da casa do Alferes, da casa da minha mãe na Rua da Ponte Seca, da fazenda do Senhor Anacleto e de todas essas casas por onde passamos. Isso me pesa. Só levanto os olhos quando a revolta arrebenta. Só levanto a voz quando me vem vontade de ferir e matar.” (QUEIROZ, 1987. p 196).

Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG