sexta-feira, 4 de outubro de 2019

As palavras libertam as pessoas



Aos 84 anos, a escritora mineira Maria José de Queiroz, radicada em Paris, se prepara para lançar o romance Terra incógnita. Autora do romance histórico Joaquina, a filha do Tiradentes, ela faz da liberdade o fundamento de sua extensa obra enraizada em Minas.


Bertha Maakaroun
04/10/2019 04:00 / Caderno Pensar / Jornal Estado de Minas





''A língua é a própria alma. É o que nos dá vida, nos traz para o outro. Você fala que gosta de sua mãe, ou de um prato. A sua língua é o seu corpo pedindo socorro em qualquer circunstância que esteja, quando você tem fome, quando tem solidão, em todos os momentos, a sua língua está ali. A coisa só existe a partir do momento em que há a palavra''

Maria José de Queiroz
escritora

Dos Autos da devassa, uma única frase no terceiro de 11 volumes ilumina um colosso de palavras arquitetadas para arrastar o libertário à forca. Embaralhada em meio ao mais extenso processo jurídico do período colonial, lá está a nova sentença: Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, era solteiro e tinha uma filha natural. Quase dois séculos se passaram, até que Joaquina, essa obscura criança bastarda da Inconfidência, engolida pela dramática história de um povo em busca da liberdade e de um herói de ascendência amaldiçoada, ganhasse corpo e vulto. E assim se fez em 1987, ao ritmo da trama ficcional bordada por Maria José de Queiroz, sob o título de Joaquina, filha do Tiradentes. Foi este o romance histórico de uma extensa obra desta belo-horizontina, residente em Paris, considerada uma das maiores escritoras vivas da língua portuguesa. Até então, Maria José de Queiroz dedicava-se a  ensaios acadêmicos, tidos como extraordinários pela pesquisa envolvida e qualidade dos textos.

Mais de três décadas depois, Joaquina – que nas palavras de Carlos Drummond de Andrade a história “nem se lembrou de esquecer” –, foi desperta por Maria José de Queiroz para o mundo. Aos 84 anos, a escritora, doutora em letras e catedrática da Universidade Federal de Minas Gerais, que já foi professora visitante das universidades de Harvard e Berkeley (EUA) e mantém vínculo, entre outras, com Paris – Sorbonne, na França, prepara-se para a nova edição do ensaio A literatura encarcerada (1981), pela editora Caravana Grupo Editorial. Pela mesma editora, ela lançará em novembro mais um romance, Terra incógnita, que se soma à extensa obra, de mais de 30 títulos, incluindo ensaios, poesias, romances e contos.

Membro da Academia Mineira de Letras (AML) – sucedeu a Affonso Penna Júnior na cadeira 40, cujo patrono é o visconde de Caeté –, Maria José será homenageada pela academia em 20 de novembro, ao completar 50 anos de cátedra. “Num país em que a cultura é um desafio e um defeito, os estudos fundamentais dela sobre escritos do cárcere, do exílio, da literatura, dos indígenas, da pobreza e de tantos outros temas, aliados a uma profunda reflexão sobre a mulher, sobre o papel da mulher intelectual e escritora no Brasil, são ainda pouco estudados”, avalia Lyslei Nascimento, professora de teoria da literatura e literatura comparada da Faculdade de Letras da UFMG, pesquisadora e referência sobre a obra de Maria José de Queiroz.

Um profundo e rigoroso trabalho de pesquisa, descrito por Pedro Nava como “catar, separar, escolher”, são qualidades de estilo da ficcionista mineira. “É artesanal, que passa por um empreendimento pautado pela erudição e pelo requinte da elaboração pormenorizada de cenários e cenas da vida mineira”, afirma Lyslei Nascimento.

ESCOLHIDA PELOS TEMAS

A liberdade, valor que integra os direitos fundamentais do homem, perpassa e funda o argumento na obra de Maria José de Queiroz. E com ela Minas Gerais, sua história, sua cultura, os ideais libertários, que dão voz a Joaquina, filha daquele que foi apelidado de “Liberdade”, mas está também presente em A literatura encarcerada (1981), A literatura alucinada (1990), A literatura e o gozo impuro da comida (1994), Os males da ausência ou A literatura do exílio (1998) e Em nome da pobreza (2006). Para além de Joaquina, a temática da liberdade também atravessa toda a obra ficcional, como Sobre os rios que vão (1991) e Vladslav Ostrov, príncipe do Juruena (1999).

É assim que Maria José de Queiroz, que gosta de afirmar que não escolhe os temas de sua obra, mas, antes, é por eles escolhida, demonstra que na composição de cada palavra a literatura se desenha, a música e o ritmo se integram, e a palavra a liberta. “Através da palavra você chega à liberdade. Temos o direito de falar. O fundamental na existência é a presença da palavra”, avalia a autora, que encontra na fusão entre o ser e a sua linguagem a essência da vida. “Você e a sua língua são um único, a língua é a própria alma. É o que nos dá vida, nos traz para o outro. Você fala que gosta de sua mãe, ou de um prato, a sua língua é o seu corpo pedindo socorro em qualquer circunstância que esteja, quando você tem fome, quando tem solidão, em todos os momentos, a sua língua está ali”, sustenta Maria José de Queiroz.

Para esta intelectual, que se emociona ao refletir sobre o exílio, o encarceramento e a privação da liberdade, o grito da palavra que se materializa em temáticas universais,  articuladas num mosaico que bem constituem uma enciclopédia cultural dos países de língua portuguesa e espanhola da América. Ao percorrer todas essas paisagens, é a Minas que Maria José de Queiroz sempre retorna. É assim que, em 1971, em Paris, discorreu em Como me contaram: 

“(...) Mas no fim de cada estrada
Minas me espera, de alcateia.
Na esquina de mim mesma entre calle street strasse e boulevard,
no agudo da incerteza,
da angústia, do desassossego,
Minas me diz: presente!
Olhos fechados, livre de todo medo,
os músculos me ensinam montanha, ferro e aço:
regresso às minhas veredas.
No sertão alucinado a paz se restabelece.
Minas existe.Vivo de sua herança: ilesa.”

É uma literatura que desafia. “Pela densidade da história que está sendo contada, pelo tecido de vozes que constroem o texto, vários escritores em vários tempos sendo trançados, pela profunda pesquisa – ela demora oito, 10 anos para lançar um livro. Por tudo isso, é uma autora que exige coragem”, comenta a professora Lyslei Nascimento. “É a maior escritora brasileira viva. Com a vantagem de que é tão ensaísta quanto ficcionista, uma poeta. Tudo o que faz é com perfeição. Agora não é uma escrita que se lê e traz conforto. Ao contrário, é uma escrita que desperta para as coisas, para o mundo. É uma escritora que incomoda”, resume Lyslei Nascimento. E assim como Carlos Drummond de Andrade, é uma literatura para fazer dormir as crianças e acordar os homens. Das montanhas e para além delas.

ENTREVISTA/MARIA JOSÉ DE QUEIROZ ESCRITORA E ENSAISTA

“A língua é a própria alma”
Como a senhora escolhe as suas temáticas?
Não escolho. Elas que me escolhem. Eu, às vezes, estou escrevendo e me vem aquela ideia de escrever alguma coisa sobre isso ou aquilo e se transforma posteriormente num livro. Agora, há assuntos que estão dentro de mim. As coisas que tenho raiva, como as prisões, estudei os prisioneiros políticos.

Como foi a inspiração para escrever Joaquina?
A Joaquina é diferente por causa do nosso herói. Não há, nem nunca houve um herói como Joaquim José da Silva Xavier. A filha dele entrou na minha vida por causa da mãe dela, que quis ter um filho que fosse de um herói. Dizem que a avó de Joaquina dizia: “Que absurdo você com essa criatura? Pensar que vai haver liberdade, não há possibilidade, o país é dos portugueses, somos colonizados”. Ela achava as ideias de Tiradentes absurdas. O tema me escolheu porque não há nada mais fundamental em nossa existência do que a liberdade.

Entre os ensaios que a senhora escreveu, um deles vai ser relançado, Literatura encarcerada. A literatura liberta? 
A literatura de dentro da prisão é a literatura da liberdade. Através da palavra você chega à liberdade. Você pode falar o que você quiser. Temos o direito de falar. O direito de reclamar e o direito de protestar. O fundamental na existência é a presença da palavra. E é com a palavra que se mobiliza para a ação, que vou conquistar o mundo. Libertas quae sera tamen. Liberdade ainda que tardia. Através da palavra, nós, em Minas, começamos. E veja a beleza da Inconfidência Mineira. A conjura é articulada também por aqueles intelectuais que foram estudar em Lisboa. Isso é ainda mais bonito. Eles se revoltam com aquele país que lhes deu a possibilidade de estudar e lutar por nossa liberdade. Foi em Portugal onde aprenderam a ler e a escrever. Isso dá aos portugueses também a honra de ter tido um povo como o brasileiro, que recebeu essa língua que não é língua de ninguém mais nesta grande América. E podemos dar ao mundo esse exemplo de que também se faz boa literatura e poesia nessa língua que poucos países sabem falar.

De toda a sua obra, qual lhe deu mais prazer de escrever? 
Foi A literatura do exílio ou os Males da ausência. Foi um grande ensaio de 715 páginas. Foi uma pesquisa que tinha começado nos EUA, depois prosseguiu na França, na Alemanha. Foi a primeira, a mais importante, e foi o tempo em que eu mais sofri. A minha própria mãe vinha e me via no escritório chorando. Você se afastar de sua terra, de seus entes queridos. Ser exilado é terrível. Exilado você perde o sentido de sua localização no mundo. Você não sabe mais em que situação se encontra, que língua você ouve. Foi o livro que mais me marcou por aquilo que sofri em fazê-lo. A mais terrível das solidões é a do exílio, da pátria. Monteiro Lobato sofreu isso. Quando exilado na Argentina, ele estava tão infeliz, que um dia ouviu um casal falando português. Saiu correndo atrás dele, pois a saudade da língua portuguesa era grande. Como existe entre você e a sua língua uma amizade grande com a própria língua. Tanto que você vai gostar de algumas palavras mais do que outras. Eu mesma às vezes converso com elas e digo: ‘Sai pra lá palavra, você é muito antipática’. Mas você e a sua língua são um único, a língua é a própria alma. É o que nos dá vida, nos traz para o outro. Você fala que gosta de sua mãe, ou de um prato. A sua língua é o seu corpo pedindo socorro em qualquer circunstância que esteja, quando você tem fome, quando tem solidão, em todos os momentos, a sua língua está ali. A coisa só existe a partir do momento em que há a palavra. Sem ela, não existe. O mundo é feito de palavras. A palavra é ação, é vivência, é a vida interior, é gostar mais de música do que de literatura, ou gostar de ambas, pois literatura sem música não é literatura. A língua deve ser ritmo, daí a beleza da língua. Cada um de nós tem um ritmo de fala. Você reconhece a fala do outro por causa do ritmo. Somos seres que temos um ritmo para nossa própria vida, uma forma de andar na rua.

Literatura e música são faces da mesma moeda?
Essa moeda se chama arte. A arte se envereda pela arte da palavra, que tem de ter um ritmo, tem de ter música, senão fica horrível.

Que tipo de pesquisa exige a sua obra?
É preciso que você pegue e veja a bibliografia para entender o que precisa ler para enfrentar um livro como aquele. Sempre li muito. O ensaio sobre a literatura no exílio foram oito anos. Estive no maior arquivo do exílio do mundo, a biblioteca da Alemanha.

Ano novo, vida nova (1971)
Embora escrito em português, o romance em primeira pessoa é quase bilíngue. A personagem-narradora Patrícia, uma mineira envolvida num caso amoroso com um francês casado, reflete sobre a possibilidade de escrever a sua história de amor. O duplo registro, ora em português, ora em francês, confere ao texto um caráter de charada, de enigma, de metalinguagem. A história, ricamente composta pelos cenários das cidades europeias, especialmente Paris, traz outros detalhes importantes recriados com requinte, como a referência à culinária e à literatura.

Homem de sete partidas (1980)
A narrativa é construída em roteiros para as terras sul-americanas. Bernardo é um personagem que busca o tio desaparecido para lhe desvendar a vida e conhecer-lhe as aventuras. A partir desse pretexto, a escritora navega sobre os campos da América Latina em mapa riscado para conduzir o narrador e leitor a uma viagem por entre as andanças de um andarilho.

Joaquina, filha do Tiradentes (1987)
Por meio da narrativa da filha de Tiradentes – até então ignorada pela história – Maria José de     Queiroz reconstrói em Joaquina, filha do Tiradentes a vida colonial cotidiana do século 18. A Inconfidência Mineira é o contexto em que ficção e história se articulam e revelam o melancólico destino da herdeira do “sal e da infâmia”, do       condenado de Vila Rica. Esse romance histórico constitui um percurso consciente e intelectualmente elaborado pela romancista, em trama que privilegia o passado de Minas.

Os males da ausência ou A literatura do exílio (1998)
A literatura do exílio é ensaio de 714 páginas, resultado de oito anos de pesquisa da autora, movida pelo desafio de recuperar o percurso de dores e sofrimentos da própria história do homem, em suas dramáticas e, pelas circunstâncias, inevitáveis escolhas. De Adão e Eva expulsos do paraíso é longo o itinerário de exílios e males da ausência, que percorrem com o desterro, o círculo do inferno, de dores e ausências.

O livro de minha mãe (2014)
Nesta obra, Maria José de Queiroz recupera a infância, a perda do pai, ainda criança, a fibra e a coragem da mulher forte que foi Honória, sua mãe. A poesia, a música, as histórias de Minas – eis o elo que une mãe e filha, em simbiose. Inscrita na longa tradição de escritores que, no luto, tentam explicar a grande falta que é a morte da mãe, a autora ecoa os fragmentos de Diário do luto, de Roland Barthes, em que o escritor trata de “uma dor absurda, impossível de contornar”. De forma mais expressiva, entoa, em dueto com Alberto Cohen, autor de Le livre de ma mère, “uma noite com palavras”, a celebração da mãe, de todas as mães.

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sábado, 2 de junho de 2018

Ponto e contraponto



















Outros se mordem,
dilaceram-se.

Passeiam desalento
entre cardo e punhal.

Em cotidiano enleio
arrastam das calçadas
o conflito ao travesseiro.

Exaltam Ionesco
no mui digno parlamento
de lençol e almofada.

De luto vestem máscara e alma
no desempenho esmerado
de tragédia encenada
entre palco e bastidores:
escasso viver, muitos atos,
vida amarga, solidão.

Esse o honesto tributo à indiferença
em descompasso de canto e dicção.

Se há metais em voz alheia,
rebelde a toda descante,
que fazer desta harmonia
de tessituras afinadas
em acorde, clave e tom?

Que fazer das velhas pedras,
aves, rios e mosteiros,
entre outono e primavera cultivados?

Onde esconder sol e sombra,
de claro azul mediterrâneo,
Chopin, Georg Sand, Valldemosa,
prelúdios de tempo sepulto
e imagens ressuscitadas?

Onde guardar sonatas?
Onde ocultar auroras?
Onde aprender discórdias?
Como semear rancores
se só nos visita o soluço,
de funda emoção descalada,
quando, em fibra e memória,
céus distantes, infâmia rara
reintegramos alumbrados
na lembrança de fantasmas
e lares empoeirados? 

Que fazer do verso inédito,
tardiamente nascido,
para celebração da ternura,
do pranto e destino avaro?

Que fazer de nós
        tão distintos,
        tão iguais,
        tão esquivos,
        tão mortais?

Que fazer de passo e ritmo
de ciranda, cirandinha
que salta aos nossos pés
na inocência recuperada?

Que fazer de flor celeste
em jardim de terra exausta?
Que fazer da envergadura
do pássaro recriado?

Que fazer de tanto afeto
se nos devora o relógio
se não nos resta pretexto
para justificar atrasos
se nos perdemos em eco
e o que fomos
já não somos?

Que fazer de nós
se jamais regressaremos
ao ferro, à montanha e ao hábito?

Que fazer de nós?
Que fazer?
Nós?


Paris, 11-04-70

QUEIROZ, Maria José de. Exercicio de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 65-68.

sábado, 27 de janeiro de 2018

Vladslav Ostrov: Príncipe do Juruena, 1999


QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Ostrov: príncipe do Juruena.
Rio de Janeiro: Record, 1999. 303p.
 
No romance, Úrsula Bock, uma funcionaria alemã de uma firma importadora de madeira, aves exóticas e plantas ornamentais, apresenta ao leitor Vladslav Ostrov, um aventureiro russo de origem nobre que, entre riscos e desafios, emerge da história do século XX numa biografia memorável. Ao emigrar para a Argentina, Vladimir salva bens de família que o possibilitam ser acionista de um banco polonês em Buenos Aires. Da Argentina à Colômbia e depois para o Brasil, na região amazônica, esse homem culto, de posses e de boa educação, faz da selva o seu reino e entre a população brasileira estabelece seus negócios e vive amores.

“Um amigo meu, dado a esoterismo e fenômenos parapsicológicos, não teve dúvida em classificar esse decalque inexplicável de Olov a Ostrov, ou vice-versa, como "fulgurações da imaginação". Quando lhe perguntei o que entendia por isso, ele me respondeu que são como spots ou clarões que nos põem em contato com tudo o que se passa no universo. Uma espécie de sexto sentido, ou intuição criadora, que nos transporta a formas de conhecimento total. No entanto, imperfeitos que somos, não atingimos o absoluto: nosso conhecimento padece intermitências. Não há revelação total, mas parcial. Por isso, talvez fosse mais correto falar de relâmpagos de vidência ou breves iluminações. A criação do príncipe Olsztyn, personagem de ficção, entretanto vivo em alguma parte do globo, seria um excelente exemplo de como isso ocorre: só me haviam chegado, mercê de breves iluminações, certos episódios de sua vida. O demais continuara oculto no magma universal. Quando se rompe, em súbitos clarões, o véu que o encobre é que acontecem as chamadas "fulgurações da imaginação". (p. 33).


“Era amor à primeira vista. Disso eu não suspeitava. Ainda não. Acreditava-me infenso a tais fraquezas. Cultivava, desde os últimos anos na Argentina, uma misoginia mal resolvida. Aborrecia-me o eterno feminino. Mas Brigitte não era como as demais mulheres... Descobri, passado o frenesi da paixão, que não só o eterno feminino existe, sim, como uma mulher é todas as mulheres. E talvez seja isso o eterno feminino. Quem conhece uma, conhece todas elas. A paixão é que é diferente. É o sujeito que reinventa o objeto amado. Embora ele seja sempre o mesmo...” (p. 84).

“A arte da sedução não é tão simples quanto se imagina. Principalmente se o rival, mantido à distância, participa da intriga e contribui para o seu bom êxito. Claro que houve finta. E com a cumplicidade da vítima. Para que a honradez e os bons princípios prevalecessem. O cornudo saiu invicto do episódio. E a bela lituana prestou valente serviço à causa nazista. Ela sabia que o amor, em tempo de guerra, também é arma. E usou-a com mestria. Para meu prazer. Nosso, talvez... Não, não quero crer que Hitler interferisse no arrebatamento da sua entrega. Nem Goering dela exigiria tamanha assiduidade nem tais caprichos de devoção a Eros.” (p. 85).

“Amargurada, desci à Amazônia com uma frase de Cocteau na cabeça: "J'ai mal d'être homme." Também eu carrego como peso a dor de pertencer à humanidade. Como é que pode haver tanta gente ruim no mundo? Será que pertencemos, todos, ao mesmo gênero humano? Ao fazer essa pergunta a Ostrov, já em convalescença, em casa, ele me respondeu: — Tenho minhas dúvidas. Não conhecendo a frase de Cocteau, contentava-me em repetir o verso de Neruda – "Sucede que me canso de ser hombre" –, bem próximo, no seu pessimismo, da frase que me citou. Mas não creia que alguém escape da miséria humana. Ninguém é perfeito. A ruindade, os vícios, o crime são nosso patrimônio comum.” (p. 159).
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Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Sobre os rios que vão (1990)


QUEIROZ, Maria José de. Sobre os rios que vão.
Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. 338p.

O romance Sobre os rios que vão narra a história de uma família de origem judaico-búlgara no interior do estado de São Paulo. O enredo gira em torno do jovem Joel Levi que, para tentar burlar os impasses da identidade e da memória judaica, troca seu nome para Jari Leite. Estão no horizonte dessa trama a sua relação com o passado de sua família e, por extensão, com a sua herança sefardita. Babilônia, nessa história de exílio, é, no Brasil, metafórica, ou seja, corresponde aos vários locais onde suas personagens vivem suas histórias: a cidade de São Paulo, após a imigração de Fatuel, o pai de Joel; o interior paulista, São Godofredo, onde ele constituiu família e se tornou um luthier; para Joel, também a cidade de São Paulo de seus estudos e do tio Mattei, depois sua experiência na Alemanha e na França. Assim, essa “Babilônia” transmuta-se num lugar imaginário, na verdade um estado de espírito no qual lamentam-se os males da ausência.

“Sem meios para me instruir, aprendi, em casa, com meu pai, que é marceneiro, a trabalhar a madeira. E o que mais queria era possuir um violino. Meu sonho era ser violinista. Deus não permitiu que eu o realizasse. Não me queixo. Toco um pouco e transferi para a minha modesta fábrica de instrumentos a paixão que sempre senti pela música. Acho que poder fabricar o próprio instrumento aumenta o prazer de tocá-lo. A minha impressão é que ao executar uma peça eu retiro de dentro do violino os sons e os harmônicos que eu mesmo pus lá dentro.” (QUEIROZ, 1990. p. 102).

“Nunca houve, nem haverá, uma cidade como Berlim. Tive a impressão de que estávamos na véspera do fim do mundo. Abraham me repetiu um dia a frase de uma amiga sua: "Aqui, uma mulher custa um cigarro e um quilo de pão, um milhão de marcos". Mas não era só a mulher: o homem também valia pouco. O que custava caro era a comida. Num cartaz de cabaré, li e anotei esta frase formidável: "Berlim, teu parceiro de dança é a morte". E a morte veio com a guerra. Tudo o que aconteceu depois você já sabe. Faz parte da história: os conflitos entre nazistas e comunistas, os desfiles de rua e o fatídico 10 de maio, quando Goebbels e os estudantes lançaram ao fogo milhares de de livros. Quando a Alemanha foi invadida eu já estava no Brasil.” (QUEIROZ, 1990. p. 173).

“Restava saber se era isso que desejava... que parte cabia ao Brasil no seu coração? E na sua inteligência? O de que gostava, e que curtia aqui, não tinha preço. Nem nome. Era a alegria de respirar o ar de casa, de cheirar a roupa de cama lavada uma vez por semana, de ouvir gente falando português, de ler os jornais pendurados do lado de fora das bancas, de admirar o riso espontâneo que ainda enfeitava, apesar dos pesares, o rosto das pessoas. Mais desdentadas que fossem. Mas... e as agressões que sofria ao descer à rua? Os mendigos deitados nos vãos das portas, os pivetes em corridas desabaladas, fazendo acrobacias nas traseiras dos ônibus, as sarjetas imundas, as valas negaras a céu aberto, os passeios ocupados por carros e vendedores ambulantes, a desobediência às leis e às regras miúdas da convivência... Ficaria livre de tudo isso. E de muito mais. Até da irritante resignação dos brasileiros diante da corrupção, da injustiça, da fraude, da impunidade e da demagogia dos políticos. Só que a inconsciência, ou talvez a pouca seriedade com que se comportam, não é para desprezar-se: se não a tivessem, como sobreviveriam aos trancos da miséria, da calamidade e da desigualdade social? A inconsciência aqui é uma forma de defesa...” (QUEIROZ, 1990. p. 336).

Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Joaquina, filha do Tiradentes, 1987, 1991, 1997

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes
São Paulo: Marco Zero, 1987. 297p. 
(Inspiração Liberdade, Liberdade, que estreou dia 11 de abril de 2016, na Globo)
QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. 258p. (1991)
 

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. 356p. 
(Versão Integral com posfácio da autora)

Em Joaquina, filha do Tiradentes, Maria José de Queiroz constrói, além de um requintado painel da cartografia de Minas Gerais, uma rigorosa reinvenção da vida cotidiana do século XVIII por intermédio da narrativa da filha bastarda de Tiradentes. Artista e artesã da palavra, como salientou Pedro Nava, a escritora deixa confluir ficção e história em sua escrita. Assim, ela arma, junto ao episódio da Inconfidência Mineira, pano de fundo da narrativa, um texto outro que põe em evidência o melancólico discurso da herdeira do “sal e da infâmia” do condenado de Vila Rica. Joaquina, alheia ao jogo de fuga, talvez possível para o esquecimento do nome do pai, aparece no cenário da literatura brasileira pelas mãos hábeis da romancista. Chama a atenção do leitor a composição dos ambientes, os pormenores evocados pela memória da narradora – “pedrinhas, seixos, pepitas de ouro, diamantes e outras riquezas” – todas essas coisas roídas pelo cupim do tempo, filigranadas pelo esquecimento da história. No romance, a filha de Tiradentes deixa de existir numa nota quase invisível nos Autos da Devassa e vem, ficcionalmente, seduzir o leitor numa apaixonante narrativa. Esse romance histórico perfila-se sob a égide de um percurso consciente e intelectualmente elaborado da autora que insinua uma constante tensão entre a ficção e a história. O que poderia ser uma lacuna intransponível torna-se, assim, um tecido cuja intrincada disposição dos fios aponta para uma trama que privilegia o passado de Minas como um tempo propício à invenção e à construção ficcional. A história dos sentidos, dos cheiros, do olhar torna-se, também, em Joaquina, filha do Tiradentes, belíssima narrativa de dor e melancolia. Tudo muito bem tramado, à luz hesitante da candeia da História.

Trailer do documentário Maria José de Queiroz: artesã da palavra, 2003, de Lesle Nascimento: https://www.youtube.com/watch?v=Vj6XSXKcRWM&feature=youtu.be

“Sei de memória, não só a condenação mas também as inesgotáveis formas por que se expressam o desprezo, a humilhação e a desonra. Conheço as mentiras da história, a hipocrisia dos patriotas, a peçonha das letras escritas, os rumores malignos, o escárnio e o medo. Aprendi, desde menina, que a vergonha da origem bastarda fere menos, muito menos, que a infâmia decretada por sentença e consagrada pela fraqueza dos covardes. Não, o tempo não lhe consumiu o corpo amaldiçoado. Vejo-o agora, vejo-o aqui. E sua cabeça, exposta ao opróbrio, seu rosto – tão semelhante ao meu, inicia a eternidade da pena crismando, no golpe de ódio do poder, o gesto de misericórdia do carrasco. Vejo-me nele. E ele, em mim, abre os olhos para a vida e para a desgraça que nos cerca. Um dia, quem sabe?, ele os abrirá para a glória... De ignomínia em ignomínia, nada me salva: nem o futuro nem a gratidão da pátria. Suas palavras talvez pudessem resgatar-nos – a mim e a minha mãe – do frio do esquecimento; ele, contudo, jamais as proferiu. Nada nos resta. Nada me resta. No espelho do quarto, nas águas do rio, nos dedos que me apontam, o seu rosto me persegue. Sempre. E esse silêncio! No entanto, as palavras... De que valem as palavras? O que dele me ficou, deveras, foi a infâmia. No abandono das horas tardias, quando a paciência esgota, cansadamente, a resignação e a calma, é o sangue que me fala. A ameaça que vem de fora, dia claro, nos gestos obscenos, nas vozes afiadas, troca-se em tortura: sou eu, noite adentro, meu verdugo. E, de mim, já não fujo: recolho-me no meu corpo, duplamente condenado. A infâmia que mora no meu ventre conspira contra todos nós. Minha alegria é o silêncio das coisas quando a escuridão noturna adormece a vizinhança.” (QUEIROZ, 1997. p. 9-10).

“Nada passa nesta cidade. Tudo é sempre igual: as pedras da rua, a fachada das casas, as pontes, os chafarizes, as cruzes, os oratórios... Do Caquende até o alto das Cabeças, as caras são as mesmas, desde o tempo do Alferes. Só no Pilar vejo gente estranha: duas ou três pessoas chamam a atenção de todo mundo. Nas procissões, qualquer cara nova é olhada de través. E, agora, sobra, para nós também, esse olhar atravessado. Tem gente que bem que gostaria de me ver enforcada, na mesma corda que enforcou o Alferes. Como essas Pilatas.” (QUEIROZ, 1997. p. 18-19).

“Se não temos ouro... Que podemos oferecer à Soberana para os seus alfinetes? A cabeça do Alferes vale ouro. Muito ouro! Está cheia de ouro! As fundições do Reino vão fundir alfinetes de ouro para a Soberana. Para quê moedas? Com o ouro da cabeça do Alferes vão fundir alfinetes, infinitos alfinetes. Todos de ouro. A Soberana terá alfinetes para a sua cabeça, para as suas almofadas e para o seu coração. Sete alfinetes de ouro atravessam o seu coração. Ou o meu... Nem sei mais. Quanta desigualdade!” (QUEIROZ, 1987. p 155).

“Tivemos uma boa ceia: galinha cozida, toucinho, feijão e farinha de milho. A provisão de queijo, da fazenda de D. Rita, começou a ser servida. E o café, tão raro, como já sabíamos, foi bebido com o maior prazer. O telheiro, apesar de espaçoso, só nos defendia do vento, da chuva e das onças e lobos. Armaram-se redes e catres, acenderam-se fogueiras do lado de fora. A fumaça nos cegava a todos.” (QUEIROZ, 1987. p. 160).

A pouco e pouco o sol apareceu. E o calor começou. A subida era difícil. Durante umas duas léguas, num caminho áspero e escorregadio, só fizemos subir. Quando chegamos ao topo do monte - o chapadão da Matutina –, pudemos descortinar toda a estrada feita, desde o arraial onde pousáramos até as montanhas mais distantes, que encerravam, em círculo, o imenso vale.
— Não lhe disse que a dor passaria quando estivéssemos na estrada? Não há dor que resista a essa beleza, Joaquina.” (QUEIROZ, 1987. p. 161).

“Estendi as peças de roupa no quintal e continuei a abrir arcas e canastras. Deixei por último a canastra dos livros e papéis. Encontrei dois cadernos em que começara a rabiscar as primeiras letras, um caderno de Caligrafia, um livro de Gramática e um de História. Todos destruídos pelas traças. Havia ainda um embrulho com os dizeres: Para Joaquina, filha de Joaquim José. Abri-o. Mais livros e papéis. Os livros: Tratado de cirurgia dos pobres, Tratado das febres intermitentes, Elementos de medicina prática, Dicionário Francês e Latino de Medicina, Manual do moço praticante de cirurgia, Segredos das Artes e Ofícios, Conhecimento prático dos remédios, Enfermidades dos exércitos, Compêndio de Botânica, Conservação da saúde dos povos, Coleção dos remédios fáceis e domésticos, Compêndio de História Natural, Tratado de Mineralogia. Todos intactos. O papel, tratado com verniz e cera, protegera-os contra as traças e o cupim.” (QUEIROZ, 1987. p. 191).

“O Mal só vem daqueles que nada fazem por mal. É sempre assim. Enfim, nada mais sei para ensinar a você. Sua educação está terminada. E sua instrução já é de sobejo. Você pode levantar os olhos. Pode levantar a voz. Eu estou cansada. Muito cansada. Passei a vida com os olhos baixos. Conheço as pedras das calçadas de Vila Rica e de Antônio Dias. Conheci as tábuas e o chão da casa do Alferes, da casa da minha mãe na Rua da Ponte Seca, da fazenda do Senhor Anacleto e de todas essas casas por onde passamos. Isso me pesa. Só levanto os olhos quando a revolta arrebenta. Só levanto a voz quando me vem vontade de ferir e matar.” (QUEIROZ, 1987. p 196).

Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG