terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Desde longe, na infância






















Elle a dû faire toutes les guerres
Pour être si forte.

Je l’aime à mourir...


Desde longe na infância,
dois talheres à mesa,
minha mãe à cabeceira,
voz pausada repetia:
“Temos teto e comida!
Isso basta!”

É a vida.
É o luto.
E ... por que não?
Isso basta...

Entre pêsames e abraços,
teve fim o cunhadesco:
na voz impiedosa
do tio cruel,
descobri que era órfã.

Restaram três avós
— Alcina, Joana e Mariquinha,
mais vô Solídio e vô Juca,
uma tia e três outras,
uma prima e quatro primos.

Veloz nos patins
e esperto no ludo,
o menino grande,
tio materno,
me vencia em tudo.

Não reclame!
A vida é combate.
Aprenda a jogar!
Livros não faltam.
Que mais quer?
O resto é o resto.
Deus proverá.

A tempo e hora,
livros nunca faltaram:
mais grossos a cada semestre,
a cada ano, mais caros.

Sempre só e sem socorro,
sem amigos nem amigas,
tudo vendo, tudo ouvindo,
a meu pai pedi em lágrimas
me acompanhasse vida afora,
me ajudasse e libertasse.

Sobrevivi.
Sobrevivemos:
ambas.
À rotina dos meses,
sobressaltos não faltavam.
Nem doenças, nem lágrimas.
Deus é grande!, proverá.

Os meses, a galope,
com seu rol de surpresas,
e a música, sempre a música,
seu fascínio e sortilégio:
“Decifra-me ou devoro-te”.

Enfrentei fuga e contraponto,
devorou-me a harmonia...
As letras se vingaram,
fazendo-me prisioneira
de códices e incunábulos.

O suor do rosto,
o sal do pão e os livros:
o trabalho e os livros,
diplomas e livros...
Livros e provas,
provas e teses,
concursos e concursos,
sessenta e quatro aulas
metidas numa semana...

Como se a eternidade fosse isso,
das seis às onze,
apenas isso,
entre muitas luas
e quatro estações:
trabalho e trabalho ...
e livros, e livros...

Num 31 de março,
à meia-noite me avisaram:
“As tropas descem a Mantiqueira!
Oh, menina!, corre pra casa!"

E o tempo passou.
Voando...
Simples e claro:
seis dias úteis,
o salário e o pão,
missa aos domingos,
revisão de provas,
editores e gráficos,
livros e mais livros,
leitores ariscos,
edições minguadas.

O direito de ir e vir,
fechar portas e janelas,
fazer malas, muitas malas...
Partir.
Deus seja louvado!

O resto?
Pedra nos rins, costela quebrada,
artrose, osteoporose, catarata,
angina e enfarto...

Quem escapa de doença?
Qual nada!
Dá-se um jeito!
Só não há jeito
nem cura, para a morte.
Ou... olho furado!
Deus é pai...
Isso passa!

E passou.

Fomos vivendo:
o piano, o aperitivo sonoro,
dois talheres à mesa,
flores no jardim,
nêsperas anunciadas.

O Brasil é grande!
O horizonte, largo...
É hora de mudar!
Os livros não respondiam
à urgência da partida:
uma biblioteca inteira,
coleções de revistas,
tudo passa a outrem
ou a outros....
Tudo passa.
Que fazer?
A hora era aquela:
da noite para o dia,
papéis e papéis,
traças e tralha,
o coração aos pulos,
o piano suspenso no ar...
Paciência...
Deus proverá.

Ano novo, casa nova,
finestra sul mare.
Dois talheres à mesa...
E mais um e mais dois...
Novos amigos,
livros e livros,
Nava, Drummond, Afonso e Alfonsus,
Mário, Cyro e Murilo ...
Torre de papel ao sabor das palavras:
Plínio em prosa e verso — o Sabadoyle

Os anos passando
o tempo encurtando,
a Indesejada à porta.
O alarme.
Mas... Deus é Deus!
Vencemos o Cabo!

A Indesejada não desiste:
apenas adia o golpe fatal.
Assepsia completa.
Um talher à mesa,
sussurros pela casa:
contam-se gotas e segundos.
A vida escassa,
se mede, se apalpa
e deixa-se auscultar
no tronco descarnado:
pele e ossos. Mais ossos que pele,
o olhar fixo, a boca selada.

Já não vivo em mim.
O ano passa...

Quando o sopro se retrai.
o pulso se arrasta,
a vida bate em retirada:
soberba e triunfante,
a Indesejada, de alcateia,
me arranca,
entre dois suspiros,
metade da alma.

Perdi meu rumo e meu caminho,
minha literatura e minha música,
meu alfabeto e minha pauta,
todas as árias, todos os enredos,
os lieder de Schubert...
todas as canções de Duparc...

Todo es polvo, es sombra, es nada.

Paris, outubro 2009.

QUEIROZ, Maria José de. Desde longe. Rio de Janeiro: Gramma, 2016. p. 22-28.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Acaiaca, 1938

Muro alto, saias longas, portas fechadas. Golas e punhos bem cerrados, janelas trancadas. Nenhum retrato nenhuma identidade. Nada que a obrigasse a sair, a enfeitar-se. Em casa se reza. Em casa se salva. Um, dois, três, oito filhos multiplicados por nove meses de espera fazem seis anos de reclusão entre sala, cozinha e quartos. Mas a morte veio, calada, esconder-se nas tripas de Artur de Lima Gonçalves. O muro caiu, abriram-se as portas, perdeu-se o cadeado. Bisturis, soro, sangue, emplastos: o câncer roía-lhe a carne, as entranhas se lhe convertiam em água. A mão que lhe assinou o óbito deu nome à família, vestiu de noiva a viúva, resgatou-lhe os filhos  da orfandade. A casa aberta a todos os ventos, viveram felizes em Acaiaca.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 164-165.

domingo, 6 de novembro de 2016

Que o novelo se desenrede...


Que o novelo se desenrede. Sem concessões. Que a minha ficção, em vez de anular-me, me ofereça a possibilidade de encontrar-me. Mais: de melhor conhecer-me e de analisar-me. Uma espécie de ficção indefinida, entre dois planos, um real, vivido, e o outro imaginado. [...] Invenção e vida. Unidas pelo fio sutil da simpatia. É a história que está a programar o vivido. Não tenho, por isso, a impressão  de que o enredo se resolva no epílogo. Como se o tempo, circular, tudo recuperasse sob o signo das letras. Talvez, no momento da revisão do texto, ao chamar Clara, e não mais Patrícia à personagem, eliminando, sempre, a primeira pessoa do singular, eu possa dar à história selo definitivo, estável. Não sei. O que sinto, por enquanto, é que tudo isso não passa de uma restituição. Restituição do fictício à ficção. Se lograr realizá-la, convencendo-me da sua realidade, poderei desaparecer. Ficarei livre de Patrícia nomeando-a Clara.

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 62-63.

sábado, 22 de outubro de 2016

Os bárbaros de hoje

Numa posição privilegiada, a dois passos da ponta extrema da Europa, a península ibérica representaria papel preponderante na hegemonia política do mundo. Imantada pelo fascismo ou pelo comunismo, arrastaria, fatalmente, o país vizinho, Portugal, o que bastaria para perturbar o equilíbrio de força e poder entre as "grandes nações". Foi o que aconteceu. Decididas a dirigir o curso da história no século XX, dividiram entre si o império do mundo. Feita a partilha, cada qual para o seu lado, o fim do século assiste, tal como ocorreu a Roma, à desintegração, às invasões bárbaras, ao derramamento de sangue... Não há mesmo nada de novo sob o sol... Os bárbaros de hoje são os turcos, os africanos, os albaneses...

QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Ostrov, o príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 174.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Três mulheres
















Vil e cuidosa espera!

Enovelam-se ausências
na tela bem urdida.
Selam-se lábios e ouvidos
no serviço das mãos,
de esperto e aplicado ritmo.

Para Ulisses, o barco,
todas as tentações do mar
e a sedução das sereias
no eterno convite da distância
e no apelo do vento.
Para Penélope, agulha e silêncio:
meses e anos
de entretido e complicado enredo.
No labirinto de longos fios:
idas e voltas, fundos suspiros,
nenhuma surpresa,
nenhum risco.

O heroísmo navega
longe de linhas e rendas
olhos presos ao infinito.

Vil e cuidosa espera!

Em tinta e letra
o fogo se converte.
Na página branca e fria
lavram labaredas:
sem pudor nem comedimento
porque o resto (se o sabemos!)
é silêncio.
Nas cartas sem resposta,
no amor sem endereço,
o alívio e a pena.

Vil e cuidosa espera!

Na praia se levantem fogueiras,
de vivas e altas chamas,
nelas se lancem lembranças,
ternura, vulto e nome.

E ao largar da nave
Enéias não mais veja
pira a declamar-lhe afeto
sem razão e sem pretexto.
Dido soberana,
olhos enxutos, morto anseio,
no ar escreva adeuses
e ao mar entregue despojos
do amor vivido - cinza breve.

Paris, 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora Ltda., 1974. p. 32-34.

domingo, 14 de agosto de 2016

Meu sonho era ser violinista

Sem meios para me instruir, aprendi, em casa, com meu pai, que é marceneiro, a trabalhar a madeira. E o que mais queria era possuir um violino. Meu sonho era ser violinista. Deus não permitiu que eu o realizasse. Não me queixo. Toco um pouco e transferi para a minha modesta fábrica de instrumentos a paixão que sempre senti pela música. Acho que poder fabricar o próprio instrumento aumenta o prazer de tocá-lo. A minha impressão é que ao executar uma peça eu retiro de dentro do violino os sons e os harmônicos que eu mesmo pus lá dentro. 

QUEIROZ, Maria José de. Sob os rios que vão. Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. p. 102. 


domingo, 24 de julho de 2016

Alforria


Alforria:
recuperar intimidades
escravizadas a alheio mando;
mobilar de eu e migo
as veredas da alma;
deixar de meter tu e tigo
em toda fiada ilusão.

Reencontrar-se
no ritmo recolhido
das carícias,
no grave olhar,
na acorde harmonia
de pessoa e máscara.
Reassumir nos ombros
o exercício dos braços.

Tudo volta ao antigo posto:
a liberdade corre às pernas
e instala-se no calcanhar.

Os pés demandam caminhos
na avidez de povoar de espaço
os rastos intervalares.

Paris, janeiro, 1970.

sábado, 16 de julho de 2016

Os passos prosseguem

Os passos prosseguem na busca ansiosa. Devem estar no nosso quarto de dormir. Perfumes, vestidos, ternos, sapatos, bolsas, alguma joia desgarrada (quase tudo está no banco), a televisão portátil, o relógio de cabeceira, os nossos relógios de pulso... Tudo inútil. Metade da vida perdida em amealhar, amealhar... O horror ao amigo do alheio. O verbo ter conjugado com ansiedade, temores, calafrio, no olvido dos verbos ser e estar. A propriedade é um roubo, sim. A nós mesmos. Transferimos às coisas a nossa residência: passamos a hóspedes interinos dos objetos. Por isso, ao perdê-los, nós os acompanhamos em degredo. Preciso convencer-me. À minha integridade basta-me, com sobejo, a identidade postiça — nome estado civil, nacionalidade. Tudo mais se sujeita à irregularidade do verbo ter e a todos os desastres da propriedade e da posse, jamais bem guardadas. O melhor, acredito, seja colecionar lembranças. Para que a memória as afeiçoe a seu grado, com direito a retoques e acréscimos, se necessário. Álbum de poucas páginas, sem fotografias e sem notas.

QUEIROZ, Maria José de. Invenção a duas vozes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 25.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Recitação de inverno
















Invenção de roteiro para jornada a dois pés:
recolher carícias à palma das mãos,
prendê-las entre os dez dedos.
Selar os lábios à lírica doçura do verbo,
engolir sílabas ternas, explosivas, fricativas,
renunciar, mesmo, às oclusivas.

Entronizar silêncio,
descobrir entre lábio
e lábio
o repouso horizontal
da inteligência muda.
Aprisionar o incendiado lume
que atravessa os olhos.
Clausurar emoções,
fingir indiferença,
alimentar monólogos.
Triunfalmente só,
reinventar
factícialmente
a alegria de ser
para "gozar a solas
del bien que debo al cielo
a solas,
sin testigo,
sin piedad,
sin amor
ni desconsuelo".


Paris, janeiro, 1970.


QUEIROZ, Maria José de. Recitação de inverno. In: ______. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1971. p. 14-15.

sábado, 18 de junho de 2016

Solilóquio

"mi soliloquio es plática con este buen amigo
que me enseño el secreto de la filantropia."

(Antonio Machado, Retrato)

Encruzilhada de todos os caminhos,
termo obrigado de qualquer empenho,
princípio e fim de todo enredo,
eis-me aqui.

Na diária intensidade do eu,
pronome pessoal primeiro,
em exercício de humana declinação,
construo ilusões, fabrico desvarios.

De egoísmo em egoísmo
me demonstro.
Sob signo de Gêmeos
determino.

Entre dúvida e dilemas
procuro segurança
para vida errante,
varrida pelos ventos
de rosa efêmera,
a que faltou perfume
de constâcia, raiz firme,
permanência.

Belo Horizonte, primavera de 1970 (outubro).

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1972. p. 94-95.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Rosa



















Na cor cambiante,
que se faz, e perfaz
ao sol e à luz da manhã,
a impossível definição.

No mesmo perfume, pertinente,
a resposta aos dons da terra,
fiel, constante.

Na forma plural,
de singular investidura,
o privilégio de ser, a um tempo,
universal e única.

Da raiz ao cálice,
da haste à pétala,
rosa.

A eternidade floresce
no jardim do homem.


Lisboa, 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. p. 43.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

2 de maio de 1789

Fotografia: Juliana Wosgraus
      Solteiro, quarenta e um anos de idade, sem Ordens nenhumas, como se lhe via do alto da cabeça não tonsurada, Alferes do Regimento de Cavalaria paga de Minas Gerais, conhecido de muita gente em razão da prenda de por e tirar dentes, Joaquim José da Silva Xavier, veio a esta Cidade do Rio de Janeiro para informação de três requerimentos: um: a respeito de umas águas, outro, de um trapiche e outro sobre o embarque e desembarque de gados. 
      Perguntado se sabia a causa de sua prisão, respondeu que não.
     No ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, de mil setecentos e oitenta e nove, aos vinte e dois dias do mês de maio, na Fortaleza da Ilha das Cobras, diante do Desembargador José Pedro Machado Coelho Torres, o Escrivão nomeado, Marcelino Pereira Cleto, fez constar de auto a sua resposta. (*)
___
(*) Cf. Autos da Devassa da Inconfidência Mineira. Rio de Janeiro, Ministério da Educação, Biblioteca Nacional, 1936, vol. IV, p. 29-30.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 58-59.

domingo, 3 de abril de 2016

Tivemos uma boa ceia

Tivemos uma boa ceia: galinha cozida, toucinho, feijão e farinha de milho. A provisão de queijo, da fazenda de D. Rita, começou a ser servida. E o café, tão raro, como já sabíamos, foi bebido com o maior prazer. O telheiro, apesar de espaçoso, só nos defendia do vento, da chuva e das onças e lobos. Armaram-se redes e catres, acenderam-se fogueiras do lado de fora. A fumaça nos cegava a todos. 

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1987. p. 160.

domingo, 6 de março de 2016

A docilidade dos comandados

Ninguém desce impune do pedestal doméstico, pois a descida supõe perda de privilégios. A conservação do poder exige talento, força e obstinação. Mas isso não é tudo. O chefe depende da docilidade dos comandados. Num primeiro estágio. Com o passar do tempo ele deve contar com a adesão apaixonada. O poder exercido sem objeções e sem protestos, num vazio onde a voz do mando se prolonga em ressonâncias, torna-se intolerável." 

QUEIROZ, Maria José de. Invenção a duas vozes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 151.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Mariana, 1752




QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 39.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Alfinetes

Se não temos ouro... Que podemos oferecer à Soberana para os seus alfinetes? A cabeça do Alferes vale ouro. Muito ouro! Está cheia de ouro! As fundições do Reino vão fundir alfinetes de ouro para a Soberana. Para quê moedas? Com o ouro da cabeça do Alferes vão fundir alfinetes, infinitos alfinetes. Todos de ouro. A Soberana terá alfinetes para a sua cabeça, para as suas almofadas e para o seu coração. Sete alfinetes de outro atravessam o seu coração. Ou o meu... Nem sei mais. Quanta desigualdade!


QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Marco Zero, 1987. p 155.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Olhos baixos

O Mal só vem daqueles que nada fazem por mal. É sempre assim. Enfim, nada mais sei para ensinar a você. Sua educação está terminada. E sua instrução já é de sobejo. Você pode levantar os olhos. Pode levantar a voz. Eu estou cansada. Muito cansada. Passei a vida com os olhos baixos. Conheço as pedras das calçadas de Vila Rica e de Antônio Dias. Conheci as tábuas e o chão da casa do Alferes, da casa da minha mãe na Rua da Ponte Seca, da fazenda do Senhor Anacleto e de todas essas casas por onde passamos. Isso me pesa. Só levanto os olhos quando a revolta arrebenta. Só levanto a voz quando me vem vontade de ferir e matar. 

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Marco Zero, 1987. p 196.

sábado, 26 de dezembro de 2015

Os livros do Alferes


Estendi as peças de roupa no quintal e continuei a abrir arcas e canastras. Deixei por último a canastra dos livros e papéis. Encontrei dois cadernos em que começara a rabiscar as primeiras letras, um caderno de Caligrafia, um livro de Gramática e um de História. Todos destruídos pelas traças. Havia ainda um embrulho com os dizeres: Para Joaquina, filha de Joaquim José. Abri-o. Mais livros e papéis. Os livros: Tratado de cirurgia dos pobres, Tratado das febres intermitentes, Elementos de medicina prática, Dicionário Francês e Latino de Medicina, Manual do moço praticante de cirurgia, Segredos das Artes e Ofícios, Conhecimento prático dos remédios, Enfermidades dos exércitos, Compêndio de Botânica, Conservação da saúde dos povos, Coleção dos remédios fáceis e domésticos, Compêndio de História Natural, Tratado de Mineralogia. Todos intactos. O papel, tratado com verniz e cera, protegera-os contra as traças e o cupim. 

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Marco Zero, 1987. p. 191.

domingo, 20 de dezembro de 2015

Lisboa



Ponte alta sobre o Tejo
lembra a América de Alcatraz,
Califórnia do Pacífico,
Golden Gate, Sausalito.

Bem depressa nos desmentem
braços abertos, mãos em palmas:
o Cristo anuncia outra língua,
outra crença, outros ritos.

O Tejo deriva-se lento,
e a medo chega ao Restelo
onde se ouviu, faz tempo,
a voz grave de um velho.

Lisboa se aquece ao sol.
Seu casario colorido, seus tetos encarnados,
cruzes, igrejas, o forte, a Mouraria
refilam seu melhor fado:
tão menina, adolescente,
Lisboa ensina juventude
a Madrid, Paris e Roma.

Do Marquês aos Restauradores
a verdura se estende:
copia, em beleza,
mosaicos de inspiração romana.

Na curva do caminho, o Rossio.
Novos vencidos da vida,
hippies de todo o mundo,
pés descalços e sujos,
indiferentes ao espanto
e ingênua modéstia lusa,
sugerem crônicas, inspiram sociologia,
no desprezo de leis, normas e uso.

Há quem acredite no fado
e vá ouvi-lo na Alfama;
porém, Lisboa, a verdadeira,
(me disseram)
prefere cantares de amigo
e trauteia canções galegas.

No Campo Pequeno
o touro se agarra à unha.
A corrida espanhola,
de tradição sangrenta,
novas artes simula
e em "enforcado" se torna,
enhorabuena,
sem sacrifício cruento.

Em Lisboa sobre lo ler
deitam-se barcas ao mar.
Se voltam, nunca se sabe
("- Ai o meu rico homem!
o meu filho, que o não
torno a ver."),
mas quando voltam
há velas e Bendito
em todos os lares.

De Lisboa sobre lo mar
partem navios,
carregados de saudades.
Se voltam, nunca se sabe,
mas quando voltam
há que celebrar:
vinho verde, bom peixe, bom cozido
saúdam o filho pródigo
que fala francês, ou inglês,
com sotaque saloio, genuíno.

Lisboa ancorada à porta do continente:
no Atlântico, o eterno apelo à partida.
Lisboa, quase Europa...
Lisboa quase América...
Lisboa, ante-sala da África...
Lisboa, véspera da Índia...
Lisboa, esquina de Macau,
Lisboa, caminho da China.
Lisboa em si mesma resume
a contradição dos mundos
que se quiseram alheios
sem suas navegações,
que se quiseram distantes
sem seus astrolábios, mapas e varões.

Lisboa, verão de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida, 1972. p. 37-40.


sábado, 7 de novembro de 2015

Sobre o livro "A literatura e o gozo impuro da comida", 1994.


Ao publicar, em 1988, A comida e a cozinha (Rio, Forense-Universitária), Maria José de Queiroz declarava, nas palavras ao "Leitor...", que essa Iniciação à arte de comer não passava de anotações à margem de suas leituras. Aguçando-nos o paladar para novas degustações, referia-se à "pesquisa em curso". Isto é, à sua pesquisa sobre as relações entre a comida e a literatura. Descobre-se agora que esse primeiro ensaio – modestamente chamado de anotações, e que era, de fato, o "primeiro livro brasileiro de gastrologia: de evolução da arte culinária associada à arte da gastronomia" (Guilherme Figueiredo), nada mais insinuava que aperitivo, convite para o grande banquete da civilização. Depois de iniciar-nos nas transformações sociais e políticas operadas pelo gosto, mostrando a importância da mesa e do convívio no comportamento dos grupos humanos, nas ideologias e no devenir da sociedade, a ensaísta nos oferece, neste novo estudo, o resultado da sua pesquisa.
Se A comida e a cozinha, ou Iniciação à arte de comer era, na bibliografia brasileira, "obra inaugural", que dizer de O gozo impuro da comida? Obra inaugural, sem dúvida. Mas da bibliografia literária. Tout court. Um ensaio magistral sobre o sistema da comida nas suas relações com a palavra: a "manducação" e suas ambiguidades, o apetite e o prazer (nas suas perturbadoras implicações com a libido), a fome e a glutonaria, num constante ir e vir entre o pensamento individual e o pensamento coletivo, traindo a aplicação do método de trabalho de Georges Dumézil que a autora deve conhecer bem.
O único escritor a aventurar-se numa peregrinação gastronômica, de cardápio mofino, pelo ventre dos filósofos, foi Michel Onfray. Mas à sua Crítica da razão dietética ("Livro de bolso", Grasset, 1990. Trad. bras. Ed. Rocco) poderíamos chamar, sim, anotações à margem da leitura dos filósofos. Que não se comparam, de modo algum, à opulência do texto nem aos requintes de erudição deste ensaio comparativo.
Num estudo de tamanha complexidade, com a minúcia e o aparato bibliográfico que o tema estava a exigir, somos aliciados, a despeito da erudição, para partilhar, de mesa em mesa, de um suntuoso festim de palavras.
Tem razão Guilherme Figueiredo: "Saber falar de comer não é falar de comer enquanto se come". "É comunicar em silêncio um mundo de todos os sentidos, vividos na memória e repostos no instante presente". É o que faz Maria José de Queiroz.
De fácil leitura e, muito principalmente, curioso, incomum, o seu livro estuda as infinitas variações da sensibilidade gastronômica. Mercê do testemunho dos grandes autores, penetramos no ventre da humanidade. E experimentamos, na sua companhia, todos os prazeres do palato e do olfato: com as personagens de Homero, na Ilíada e na Odisseia; com Sócrates e Alcibíades, no Simpósio; na Roma de Nero, com Petrônio. Instruídos nas extravagâncias da goela, somos apresentados aos excessos do corpo grotesco nos livros de "alta gordura" de Rabelais. Aí, a festa é permanente; a vida, uma digestão interminável. Bem outro é o quadro com que nos deparamos na literatura picaresca, fustigada pela miséria: é o vale-tudo da astúcia na luta pelo pão de cada dia.
Passado o tempo, a mesa se converte em objeto do desejo da burguesia, índice de riqueza e de poder. A tal ponto que Fome, romance de Knut Hamsun, opõe à abastança ostensiva da sociedade o drama de um pobre diabo, anônimo, cuja obsessão é a comida.
Embora intrusa no banquete da civilização, a cultura brasileira também sucumbe à mesa de Aluísio Azevedo, de Raul Pompéia e, até mesmo, quem diria?, à mesa do dispéptico Machado de Assis. Do canibalismo futurista c modernista, passamos às grandes ilhas gastronômicas do Brasil: com José Lins do Rego, Jorge Amado, Pedro Nava e Érico Veríssimo.
Após tão longo périplo, aprendemos que Guilherme Figueiredo, Albert Cohen e Günter Grass tomaram a gastronomia para tema literário. Encerra-se com eles o nosso passeio gastronômico. O ensaio de Maria José de Queiroz é um todo único cuja síntese está no apetite. E quem saiba conjugar, com talento, os dois apetites – o do ventre e o da inteligência, nele encontrará, certamente, todas as finezas do paladar.
Isaac Cohen (da Quinzaine Littéraire)
QUEIROZ, Maria José de. A literatura e o gozo impuro da comida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.

Sobre o livro "A comida e a cozinha, ou Iniciação à arte de comer", 1988.




Qual a trajetória histórica da arte culinária no mundo ocidental? Em que sentidos básicos têm evoluído as relações do homem com a comida e o papel social da cozinha – da origem das receitas ao aparecimento do restaurante, e deste último ao self-service? Como se enraízam historicamente os rituais gastronômico alimentares e a valorização da mesa como objeto da burguesia?
Essas e outras questões constituem o centro de interesse deste livro de Maria José de Queiroz. Dos requintes da cozinha do século XVIII à banalização dos hábitos alimentares nestes tempos atuais em que a experiência e a qualidade de vida se esvaem de maneira alucinante, da Teogonia de Hesíodo a O linguado de Günther Grass (senão a La grande bouffe de Marco Ferreri), temos um rico itinerário que a Autora desdobra para nós, de modo a visualizar a evolução da  própria sensibilidade gastronômica.
O leitor poderá então lançar a pergunta: seria esta uma obra de erudição, no rastro de um Jean-François Revel? Ou ainda: corresponderia ela a um tratado de história da nutrição ou de fisiologia do paladar, associada à gastrolatria identificável em tantos manuais de cozinha? Indagações desse tipo não têm o menor cabimento se atentarmos para o texto de A comida e a cozinha. Texto que extrapola as classificações redutoras e acolhe sabiamente, no trato daquelas questões, o ponto de vista multidisciplinar.
A despeito da singeleza (diríamos, da singeleza sensualista) dos temas principais em exame, Maria José de Queiroz, conjugando o senso de pesquisa histórica (tão evidente em A literatura encarcerada) e o dom de desatar recordações – lembranças de cheiros, cores e gostos (tão vivas em seu romance Joaquina, filha do Tiradentes) –, soube produzir uma verdadeira reforma de compreensão dos prazeres da mesa enquanto objeto de investigação. Conforme ela própria enfatiza, somente livres do preconceito que atribui à ordem do gosto e do olfato condição inferior à das ordens da visão e da audição é que estaremos aptos a participar do banquete da civilização. "Do mito prometeico à simbologia do cru e do cozido até as artes da mesa, a natureza e a cultura marcam encontro diante da comida, sob a tutela dos cinco sentidos." A propósito, é possível concluir que a Autora não cede a um tema da moda (cada vez mais contemplado pelas seções especiais da imprensa e pelas incríveis tiragens dos manuais de cozinha); ela procede sim a uma reavaliação positiva das percepções gustativa e olfativa, e de sua importância no devir das sociedades ocidentais. Sem dúvida, tarefa admirável que deverá, por si mesma, assegurar a este trabalho publicado pela Ed. Forense-Universitária senão o agrado de um vasto público, pelo menos um lugar de honra no festim do espírito. 
Luiz Otávio Barreto Leite 

QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha, ou Iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Restaurante

O nome restaurante aparece pela primeira vez num decreto de 8 de junho de 1786 que autoriza os traiteurs e restaurateurs a abrirem suas portas ao público e dar-lhe de comer. [...] É então que se introduz no vocabulário comercial parisiense a expressão "mesa de hóspede"("table d'hôte") que distingue a mesa do dono-da-casa a que tinham acesso os clientes. Tal procedimento feria as prerrogativas das hospedarias, do que resultariam mais conflitos e processos se, ao suprimir todo privilégio, a revolução não tivesse facultado aos restaurantes a inclusão, nos seus cardápios, de entradas, hors-d'oeuvres, cozidos, assados, sopas etc., etc.

QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988. p. 79.

domingo, 27 de setembro de 2015

Albatroz




















Albatroz:
na envergadura das asas,
a dimensão do voo.
Na alvorada,
a volúpia do espaço;
no ocaso,
a derrisão da proa.

Albatroz escarnecido
- tentação do infinito
bem cedo frustrada,
sonho de altura
convertido em burla.
Na estreiteza dos pés,
sem uso,
castigo e luxo.
Convés e marinhagem
- cenário e público.

Albatroz, Alcatraz:
nome e vínculo.
Muros, muralhas,
ferro e fogo
punem sonhos absurdos
que se quiseram reais,
sem asas
- curto voo.

Lisboa, verão de 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida, 1972. p. 53-54.

domingo, 13 de setembro de 2015

Antônio Francisco Lisboa, enfim liberto

















Tudo claro, calado.
Nenhuma surpresa na via sacra:
Cristo, os apóstolos, a morte,
dois ladrões, muitos soldados.
Mas no azul largo do horizonte
braços e mãos nos alertam:
no alto do Matosinhos
assiste douta assembleia.

Oh profetas, nobres profetas!
Palavras encarceradas
nas letras mudas, eternas,
no gesto feito de pedra.
A voz desatada em verbo
ameaça partir no gesto.

E como saber que dizem?
Como entender-lhe a fala?
Que vozeio o seu, tão secreto?

O silêncio apenas repete
na insistência da pedra
o sonho frustrado na terra:
na tarde longa dos séculos,
prodígio de mãos e braços
de Antônio Francisco Lisboa,
enfim liberto.

Congonhas, setembro de 1972.

QUEIROZ, Maria José. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 190-192.