quarta-feira, 12 de agosto de 2009
Ao passado, os seus despojos
Inútil procurar-nos
onde não estamos.
Inútil abrir janelas
sobre o campo santo.
No frio retrato
de traço imóvel
o perfil chato, plano.
No redondo invisível,
o melhor ângulo.
No gosto da meninez,
recuperado no bolo,
a fábula literária,
a ficção e o engano,
a justificação do ócio
que fabrica dignidade
à custa da memória
e raparigas em flor.
Na água turva do tempo
Narciso se contempla:
a muitas imagens passadas
outras tantas acrescenta.
Qual a verdadeira
se em todas se perdeu
em em todas se reinventa?
Se o pecado se nutre do hábito
e o demônio persiste no erro,
por que repetir o ontem
fechando em aperetado círculo
meros fantasmas de nós mesmos?
Nosso melhor retrato
- gesto, voz e enredo -
foge da linha e do quadro,
faz-se e refaz-se no ar,
dissipa-se no vento.
Inútil fixá-lo em cores,
inútil dizê-lo autêntico.
Além da imagem provável,
no presente fugidio
ou num futuro talvez,
a nossa efígie verdadeira,
vulto incoerente.
Aí nos escondemos:
no traço impreciso
(sempre a desenhar-se),
o mais perfeito.
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra, 1974. p. 14-15.
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