terça-feira, 3 de janeiro de 2012

1789-1790

Que sílabas latinas ressoassem em terras incultas e que a aplicação aos estudos significasse apenasmente amor desinteressado à ciência e ao saber parecia coisa absurda aos olhos e ouvidos dos promotores da Devassa da Inconfidência Mineira. Não nos compete, no entanto, desentender-lhes os argumentos. A história já os deu por entendidos. Vamos além.

Das inúmeráveis doutrinas registradas no Século XVIII avulta em importância, e em prestígio, a Ilustração. E Luís Vieira da Silva, como tantos outros inconfientes, não só a conhecia como a professava no silêncio da sua biblioteca frequentada pelo diabo,* inspirador da Enciclopédia e do racionalismo.

Se é verdade que raramente se sabe, ao certo, aquilo em que se crê, a ninguém, mais que ao Cônego suspeito de sublevação, se deveria aplicar  o aforismo. Ilustrado, nutrido de boa ciência, bem informado, muito natural que Voltaire, grande agitador de ideias, e o abade Mably, utopista, lhe ensinassem política e rebeldia. Contudo, a sua memória, espelho de  noites e dias de leitura, pouco o ajudou durante o interrogatório da Ilha das Cobras. Não lhe lembrava se entre as pessoas da sua amizade jamais se tivesse falado sobre a matéria do levante nem que dele lhe tivessem dado qualquer notícia.

Todo o seu passado de dedicação à Igreja, pois era sacerdote exato e de firme crença católica, bem como o prolongado empenho no saber, de nada lhe valeram. O seu primeiro sentimento, os autores o comprovam, foi o de eximir-se de toda culpa, declarando-se alheio à conspirata infame. Depois, instado uma e mais vezes para que confessasse a verdade, à qual tinha faltado, respondeu,"cuidando só dos seus deveres, tratando como mais importante do bem espiritual sem se embaraçar com o corpo, (...) dizer tudo o que sabe, cumprindo com isso as obrigações de fiel vassalo que Sua Majestade tome as providências que for servido."**

Essas coisas aconteceram em 1789 e 1790.

Antes que chegasse ao seu fim, o Cônego Luís Vieira da Silva se viu privado da sua livraria, todos os seus bens confiscados pelo Governo. Só não lhe confiscaram a erudição, penosamente adquirida. Confiscou-a a morte, impiedosa. Não se procedeu, então, a devassa nem se lavrou auto de sequestro.

* Leia-se, de Eduardo Frieiro, O diabo na livraria do Cônego. (Belo Horizonte, Editora Itatiaia Ltda., 1957). O autor avalia, à vista do catálogo dos livros confiscados, o apetite de cultura do inconfidente que o malogro da conspiração frustrou para sempre.
** Cf. Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, p. 299.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 69-73.



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