sábado, 13 de janeiro de 2018

Ano novo, vida nova (1978)


Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: 
Civilização Brasileira, 1978. 107p.

O romance, em primeira pessoa, embora escrito em português, é quase bilíngue. Na trama, a personagem-narradora, Patrícia, uma mineira envolvida num caso amoroso com um francês, casado, reflete sobre a possibilidade de escrever sua história de amor. O duplo registro, ora em português, ora em francês, confere ao texto um caráter de charada, de enigma, de metalinguagem. A história, ricamente composta pelos cenários das cidades europeias, especialmente Paris, traz outros detalhes importantes recriados com requinte como a referência à culinária e à literatura.

“Talvez comece aí a minha novela. Não me tenta, contudo, a ficção oclusa, cerrada em si mesma: o vivido camuflado pelo escrito. Não submeteria a minha personagem, ainda que autobiográfica, à contingência de uma existência puramente fictícia, alheia ao presente e às suas vicissitudes. Gostaria de inserir-lhe a vida numa intriga jamais inaugurada, jamais concluída. Sem princípio nem fim. De modo a fazê-la participar da essência mesma do tempo. Contínua e sempre continuada. Será isso possível? Ficção sem fixação. Para reencontrar, realmente, os sentimentos e as emoções experimentadas.” (QUEIROZ, 1978, p. 30).

“Que o novelo se desenrede. Sem concessões. Que a minha ficção, em vez de anular-me, me ofereça a possibilidade de encontrar-me. Mais: de melhor conhecer-me e de analisar-me. Uma espécie de ficção indefinida, entre dois planos, um real, vivido, e o outro imaginado. [...] Invenção e vida. Unidas pelo fio sutil da simpatia. É a história que está a programar o vivido. Não tenho, por isso, a impressão  de que o enredo se resolva no epílogo. Como se o tempo, circular, tudo recuperasse sob o signo das letras. Talvez, no momento da revisão do texto, ao chamar Clara, e não mais Patrícia à personagem, eliminando, sempre, a primeira pessoa do singular, eu possa dar à história selo definitivo, estável. Não sei. O que sinto, por enquanto, é que tudo isso não passa de uma restituição. Restituição do fictício à ficção. Se lograr realizá-la, convencendo-me da sua realidade, poderei desaparecer. Ficarei livre de Patrícia nomeando-a Clara.” (QUEIROZ, 1978. p. 62-63).

“A língua de empréstimo, mesmo aquela que se fala com fluência, e também com prazer, cansa ao fim de certo tempo. A inteligência desperta não pode ignorar, um momento sequer, a sintaxe, a morfologia, o vocabulário. Regras e normas constantemente se impõem. Não é só. Para chegar a falar correta e correntemente, vivemos, em nós mesmos, a língua estrangeira e constantemente a assimilamos, num processo jamais concluído de reelaboração do aprendizado. À língua materna, tal não acontece. Corre livre o pensamento. Deturpa-se a pronúncia, infringem-se leis e uso. Nada importa. É patrimônio próprio. Infenso à dilapidação. E mais: bem ou mal, sempre nos fazemos entender. O medo da censura, o autopoliciamento, o respeito ao idioma que não é o nosso favorece a tensão. Ninguém se sente impune ao pronunciar uma língua estrangeira. Isto é, aqueles que aspiram a uma certa ideia de correção de linguagem. Fluência significa esforço, concentração, vigilância. É fato: pode-se pensar numa língua estranha à nossa. Esse, o grande privilégio dos que dominam um novo idioma. Pode-se, até, sonhar em francês, em russo, em javanês. No entanto - a encontrar-se aí a essência da função fabuladora –, só se fala sem pensar a língua materna. É isso o que ela guarda de próprio e de misterioso.” (QUEIROZ, 1978. p. 104-105).

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Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG

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