sábado, 13 de janeiro de 2018

Homem de sete partidas, 1980 , 1999.


QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. 213p.

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Record. 1999. 240p.

Nesse romance, o jovem mineiro, Bernardo, busca refazer os caminhos de um tio, o inadaptado e aventureiro Euclides, em terras hispano-americanas. Assim, a viagem que empreende acaba por ser uma tentativa de desvendar a vida do parente andarilho, mas também a sua própria. Por certo, é, ainda, a viagem do leitor por um mapa aberto da América Latina. Para Otto Lara Rezende, o convite à viagem, ou à leitura, funde-se à certa vocação de felicidade, inerente ao humano. Feliz, assim, é o homem de sete partidas, aquele que se liberta de uma rotina sufocante e/ou de uma família opressiva. A ficção, pois, ganha asas e “sobrevoa as montanhas e sai pelo mundo”, fazendo com que o cosmopolitismo, presente na narrativa, possa ser visto “como uma espécie de libertação das amarras que cercam e que reprimem o cotidiano mineiro, ou belo-horizontino.”

“Ele já se encontrava na  Colômbia. Muito didaticamente me falava do engano das suas "invenções". Mas não diminuiu, aos meus olhos, a importância da paisagem desconhecida. Alargou-se, em considerações pitorescas, acerca das trepadeiras, das borboletas, dos insetos, das orquídeas, do mata-pau, das palmeiras e da vitória-régia. Tudo quanto de belo se encontrava pelo caminho parecia-lhe, confessava cioso da sua autoridade, compensar brilhantemente a ausência de meia dúzia de leões, girafas ou elefantes, animais que não tinham nem a metade do encanto das grandes famílias ululantes de macacos e micos, de papagaios, tucanos e garças, de jacarés, serpentes, sapos, tartarugas. Mostrei a mamãe, altaneiro,  que o engano do tio fora até providencial: era muito melhor ter um peixe-boi, um pirarucu ou uma sucuri que ter duas centenas de hipopótamos.” (QUEIROZ, 1980. p. 29).

“Nem todos os caminhos são para todos os caminhantes. É necessário saber escolher. E bem. Nada de insegurança. Ao verdadeiro homem se conhece nos momentos de decisão. E tomada a decisão, aquele que tem fibra arca com as consequências. Chegado o momento, assuma suas responsabilidades. E não peça licença à sua mãe, nem ao seu pai, nem ao seu tio, nem ao cura nem ao delegado para viver. Viva a sua vida. Seja dono do próprio nariz. Se quebrá-lo, é seu. Ninguém tem nada a ver com isso. Homem de nariz quebrado, continua homem. E nariz a gente conserta. O que não se conserta, nem se remenda é a dignidade. Não está na cara, como o nariz. Apesar disso, é visível. E se estampa, com muita manha, nos olhos e nas vozes dos outros. Até no escuro. Convém, portanto, tratar de conservá-la. Vá, mundo afora, observando e aprendendo. Tire lição da vida alheia. Defeito visto ensina mais que elogio. E guarde silêncio: ouça e cale-se. Sempre que possível. Chamado a manifestar-se, comece por agir. Só dê opinião quando consultado. Se falar, fale afinado: na hora certa, sem fugir à medida do costume, no tom exato. Porque se replicarem, você fala mais alto, e domina a situação. Ninguém vence o cauteloso. Agora, em tempo de baile e de folga, não se faça de rogado: dance e cante. Obedecendo, sempre, ao compasso, atento aos costumes da sala. Uma coisa é certa: se o divertimento é bom, o trabalho é melhor. De experiência posso afirmar que o amor, o jogo, a comida e a bebida só enfeitam o mundo. O que dá sentido a tudo é o trabalho. Observe, por onde andar, como os homens e as mulheres trabalham. E chegará à seguinte conclusão: os mais felizes são aqueles que descobriram que o trabalho faz parte do dia, é tempero necessário à vida. Função natural leva ao amor, ao jogo, à comida e à bebida. Ainda aí, não se esqueça: toque afinado. O mundo é música escrita que você deve ler e interpretar. Prepare o fôlego, exercite as mãos e saiba usar os olhos. A vida é um dom. E viver, meu sobrinho, é uma vocação”. (QUEIROZ, 1980. p. 42).

“Euclides, vivo, incomodava a todos. Tivera êxito nos negócios, gozava de excelente fama entre as mulheres... que mais queria? É isso que importa! Nadie o entendia. Ele inquietava e escandalizava. Suas ambições escapavam ao homem comum. À força de agitar-se, de agir, de angustiar-se, foi longe demais: alcançou o proibido. Sempre me repetia que o seu maior desejo era conhecer seus própios límites: queria saber até onde iria. Em tudo. Falta sempre alguma coisa ao homem que jamais experimentou essa vertigem, confessou-me certa vez. Nesse dia, ele chegara a um dos seus abismos: o da fúria homicida. Um dos seus empregados abusara de uma indiazinha. Euclides foi procurá-lo: ele tinha de reparar o crime. O empregado, cínico, replicou que apenas se antecipara ao pai, aos irmãos ou à indiada suja que, em obediência ao hábito, se encarregariam de fazê-la mulher. Ela, índia, devia-lhe um privilégio: ele, branco, dera-lhe a provar o gosto do sexo de uma raça superior. Euclides, fora de si, atirou-o ao chão. Ao vê-lo por terra, seu primeiro ímpeto foi matá-lo, à frio. Quase sucumbiu à tentação. Era o seu límite. Vencida a vertigem, pôs o revólver na cintura. A mão direita em garra, presa ao pescoço do homem, levantou-o para aplicar-lhe punição mais eficaz: com um pontapé vigoroso, privou-o, vitaliciamente, de iniciar nos mistérios do sexo índias e brancas, sem discriminação de raça.” (QUEIROZ, 1980. p. 195-196).

“A alguns metros de distância da cama, bem à vista, o mapa da América do Sul, pontilhado de alfinetes de cabeça redonda, colorida, sugeriam o roteiro ideal. As amazonas, o império incaico, o ouro, a Conquista, a floresta, o rio-mar nada mais eram que território imaginário, de fronteiras limitadas. [...] Rosto sem traços, personagem de morte obscura, titio tomara caminho ignorado, fundindo-se às sombras da noite amazônica. Traição grande, enorme, a que sofri. Por que não deixou para desaparecer depois da nossa viagem?” (QUEIROZ, 1980, p. 35).

“Quando contei à comadre Elvira que os meus escrúpulos de consciência não me deixavam dormir, ela não se admirou. Era pior que eu. Em pecado grave, mortal, não amamentava os filhos. Temia que Deus punisse o inocente para castigá-la. Perguntei-lhe de onde tinha tirado isso. Da Bíblia. Da Bíblia? Pois não está escrito que "Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados"? Fiquei horrorizada. Não sosseguei enquanto não obtive do padre Arduíno uma boa explicação para a sentença bíblica. E corri a participar à comadre que podia amamentar o coitadinho do afilhado sem susto: as uvas verdes nada tinham a ver com o leite materno. Helena, sua irmã, me contou que Elvira tinha mania de pecado.” (QUEIROZ, 1980. p. 65).

“Vinte e três anos de convivência com a floresta, com as cobras, os insetos, as febres, as piranhas e... com a morte. A morte sem disfarce. Quando ataca, ataca sem piedade: de frente. Só o homem, na selva, ataca por trás, de emboscada. Só o homem é hipócrita e mal-intencionado. Dos bichos e das árvores não tenho queixas. Marcaram-me fundo. Mas combatemos combate leal! Hay que temer a los hombres! No entanto quando se tem um amigo... A selva fortalece e consagra as amizades. Ali, sim, é que a fidelidade do amigo se põe à prova. O verniz da civilização não tem razão de ser. Supérfluas nos parecem, e falsas, as fórmulas de polidez, os elogios, os agrados, a solidariedade de fachada. A floresta, testemunha silenciosa, exige atos e não palavras.” (QUEIROZ, 1980. p. 86-87).

“Sem uma tribuna de papel, como vê, ninguém aqui logra defender-se publicamente: palavra puxa palavra, às palavras se seguem as ações, à violência do verbo, que esgrimem uns contra os outros, sucede a violência física, ou a violência propriamente dita que é, hoje, uma instituição nacional. Seu tio não estava preparado para viver num país como o nosso. Ainda que os seus ideais políticos se abrigassem sob a bandeira negra do anarquismo, derivavam, em linha reta, do evangelho de Tolstoi. Nunca li Tosltoi. Mas era o que ele proclamava. Sua estatura, seu vozeirão, seus modos agressivos, seus protestos contra a injustiça e contra a opressão não abrigavam ódio: eram fruto de amor, provinham do sentimento de fraternidade universal. Detestava a Igreja, isso sim, e abominava a política e o poder.” (QUEIROZ, 1980. p. 121-122).

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Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG

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