segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Leia e ouça um trecho de A literatura encarcerada, de Maria José de Queiroz



Trecho de A literatura encarcerada, de Maria José de Queiroz. Belo Horizonte: Caravana Grupo Editorial, 2019.   
Leitura: Breno Fonseca (Faculdade de Letras da UFMG)

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Sabemos, de longa data, que a detenção e a prisão, as torturas e a solitária, a perseguição e o degredo nem sempre reduzem ao silêncio quantos os padecem. Boécio e Paulo de Tarso, condenados ao cárcere, Dante, ao exílio, Galileu, à abjuração, Campanella, à masmorra, Giordano Bruno, à fogueira, Dostoiévski, ao fuzilamen-to, Marc Bloch, ao campo de concentração, Albert Speer, a vinte anos de pena em Spandau, introduziram na história do crime o ritual político e religioso do castigo. Frei Luís de León e Padre Antônio Vieira, vítimas da Inquisição, Cervantes, cativo dos mouros na Argélia, e dos seus credores em Sevilha, Silvio Pellico, arrastado da Itália à fortaleza de Spielberg, elevam à imortalidade da ignomínia os executores das suas sentenças. Gorki, Köestler e Trotski, Siniavski e Soljenítsin, Oscar Wilde e Cummings, Sarmiento e Martí, Gramsci e Charles Maurras, Nerval e Apollinaire, Camilo Castello Branco, Maurício de Lacerda, Evaristo de Moraes, Monteiro Lobato e Graciliano Ramos, Mário Lago, Frei Betto, Augusto Boal e Flávia Schilling, desapropriados do corpo, submetidos a torturas físicas e morais, provaram que a imposição da Lei pode transformar-se num mecanismo autônomo, alheio à Justiça e ao Direito. Seus nomes, tomados, entre muitos, ao acaso de nossas leituras, ascendem, mercê da experiência aviltante da perda da identidade, a uma nova classe – a dos sobreviventes da infâmia. Desvanecidos os vínculos que os uniam à arte, à literatura, à sociedade, passam, todos eles, a pertencer a história mais vasta – a história universal da injúria. Ou, como quer Soljenítsin, diríamos que para eles se inventou talvez um lugar especial no inferno: o “Primeiro Círculo” de A divina comédia.
 
Não convém, isso posto, abordar-lhes os escritos do cárcere com o mesmo interesse estético com que nos aproximamos de suas obras. Tolhido na sua liberdade, colhido na rede do poder, o escritor aliena-se ao mando que o subjuga. Estranho à própria inteligência, destituído da identidade pessoal, que o situa no espaço e no tempo, conferindo-lhe o privilégio da palavra, ei-lo à margem do sistema: de infrator, inicialmente, transmuta-se em delinquente; de detento ou subversivo, em dissidente ou revolucionário. Cabe ao regime nomeá-lo, atribuir-lhe número e domicílio, dando início à sagração da infâmia.

Por isso, as páginas escritas nas celas estreitas e mal iluminadas, à míngua de todo estímulo intelectual, nem sempre instruem acerca dos autores, enquanto artistas e criadores. Instruem-nos, sim, na disciplina monstruosa cujo exercício se funda nas prerrogativas do mando. Seu interesse? O protesto, a denúncia, o desabafo. Além de grifar a invencível fortaleza do espírito humano, esses documentos introduzem-nos no território lábil da Justiça e do Direito, permitindo-nos assistir ao ritual celebrado pela consciência do Estado a fim de redimir-se perante a sociedade e a história. Isento de culpa, legítima e imparcialmente, ele se pronuncia, soberano. Inútil refutar-lhe o juízo, fiado na interpretação da lei e na autoridade que emana do poder. Ao réu, ou vítima, destituído de direitos, não se concede a palavra. E, proferida, continuará inédita. Sem qualquer ressonância.

A literatura do cárcere – memórias, cartas, confissões, libelos, denúncias, manifestos – dificilmente logra, por essas e mais graves razões de sigilo, censura ou segurança nacional, divulgação imediata. Se publicada, a distância que a separa do tempo e do lugar de origem age em detrimento da sua eficácia. Destituído do vigor da atualidade, o testemunho político adquire, compensadoramente, importância histórica, arqueológica, às vezes, de nefasta memória.

Essa literatura, estranha às exigências estéticas que informam os textos literários, entroniza capítulo à parte nos estudos de comportamento político. O prisioneiro, dominado pelo sentimento de impotência, desligado do passado e do futuro, obrigado a assumir, no presente, uma nova identidade, nem sempre consegue recuperar o grau de objetividade (ou de lucidez) indispensável para transformar dúvidas e contradições em verdade – a sua verdade. O que vale dizer, a sua versão, equilibrada e real, da experiência vivida. Daí, a falência de muitos. E, sobreleva notar, mesmo o escritor de ofício, inibido pelas condições que o exoneram do papel de espectador, transformando-o em ator, sobre a influência desmoralizadora da prisão. À mercê da máquina carcerária, num diferente aglomerado humano e social, sujeita-se, ao expressar-se, a bem distintas exigências. Ei-lo, portanto, diante do problema da perspectiva teórica a adotar, de vez que a teoria lhe conforma o espírito. Precipitado num meio adverso, como proceder? Não se trata, apenas, de inventar um sistema de relações baseado numa experiência que refoge a todo conhecimento. Trata-se, muito principalmente, de conferir eficácia aos seus atos (ele, homem de palavra). Porque, em momento de exceção, quando se encarceram ideologias e o delito de pensar sofre punição, também o que se escreve deve investir-se da contundência do concreto. A noção de objetividade, a que me referia, não pode ter, nesse domínio, sentido positivo, controlável. É objetividade relativa, em virtude da emergência histórica, social e política que suscita no ator o autor. Nem sempre capaz, no entanto, de realizar a metamorfose seguinte. Qual seja, a da emancipação do escritor. Acreditamos que a maior dificuldade do artista, ou criador, em atingir um conhecimento equilibrado do que é e de quem é, resulte na situação anômala em que se encontra, sendo, ele próprio, parte integrante do todo que determina a significação dos fenômenos e dos mecanismos de comportamento dos seres que com ele convivem. Quase pascalianamente podemos declarar que todas as partes desse mundo – o mundo carcerário – observam uma tal relação e um tal encadeamento entre si, umas com as outras, que seria talvez impossível conhecer uma delas sem a outra e, consequentemente, a razão por que inúmeros prisioneiros optem pela evasão: no mundo de além das grades concentra-se o seu interesse. Dele se nutre a sua ciência, nele se satisfaz a sua sensibilidade. Não o procurou Sócrates no vaso de cicuta?

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