segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Leia e ouça um trecho do romance Terra incógnita, de Maria José de Queiroz

Trecho do romance Terra incógnita, de Maria José de Queiroz. Belo Horizonte: Caravana Grupo Editorial, 2019.
Leitura: Katryn Rocha (Faculdade de Letras da UFMG)



***

Terra incognita

Todo marinheiro carrega o vento na bagagem.

Nem pode ser diferente. Os lobos do mar nunca repousam a cabeça no travesseiro das certezas. Estão habituados a ignorar os dramas do cotidiano, a interpretar o amor como farsa indigesta, a afrontar o risco do imprevisível, se desembarcados, continuam a navegar.

E não é só isso: mais que o repouso, desfrutam mesmo, em terra firme, o privilégio da morte adiada. Nesse privilégio, embarcam seus enredos: no cotidiano de cama e mesa, o calendário da temeridade, cujos anos, nos domínios de Netuno, se contam em naufrágios e procelas.

Damião não fugia à regra.

A cada volta ao chão, à casa, com portão e telhado, chave na porta, enovelava novos capítulos à aventura sem fim de sua intimidade com o mar, os peixes, o sal. Porque o mar, só o mar, lar incomensurável, onde tudo cabe, tudo exorbitava. Era seu tema: tema e obsessão, sempre a recomeçar. Mais belo que catedrais, mar ferido, mar salgado, sempre recomeçado.

Em meio a temporais – ondas e vagalhões na imensidão das águas – crepitavam o fogo greguês e o fogo de santelmo – chama azulada, no topo do mastro – a ferir-lhe os olhos, a cabeça, a alma.

Impregnada à saudade do tempo ido, alongava-lhe, no estio, as tardes de mormaço, povoando, na rudeza do inverno, sua insônia e suas miragens.

Relâmpagos e trovões, perdas e naufrágios ilustravam as profecias de Daniel – a dos quatro animais que emergem das profundezas do oceano: o leão com plumagem de águia, o urso com três costelas entre os dentes, o leopardo – o mais terrível entre todos, com quatro cabeças e asas de aves, dez chifres e caninos de ferro – espantoso entre mil espantos. Contudo, nem uma letra escrita: “– Tudo passa, tudo corre”, dizia: – “Omnia fluunt, omnia fluunt...”.

Mas Damião lembrava, sim. Lembrava de tudo: do preceptor, do latim, do grego. À noite, à luz de raios e relâmpagos, desperto, ao espocar da borrasca, por sinos de bronze e gritos de socorro, ocorria-lhe o clamor da fé: “– São Jerônimo! Cruz credo! Santa Bárbara! Ave Maria!”

Tormenta e tormentos: as epopeias de Homero e de Virgílio, a saga de Ulisses, o Odisseu, na Guerra de Troia, e de Eneias, guerreiro troiano, filho de Anquises, o belo, e de Afrodite, deusa do amor, nascida da espuma, e ele, logo ele, simples mortal, exposto, de dezembro a janeiro, à inclemência dos temporais.

Ao revoar das procelárias, nos versos da Ilíada e da Odisseia, Damião vislumbrara o apelo do mar, seus mistérios e sua magia: a infância inteira a sonhar com o jamais visto nem imaginado – o rugir das águas encapeladas, o ribombar dos trovões, o dilúvio implacável a devastar o convés em turbilhão... e, enfim, a revolta da natureza contra a petulância dos que julgam dominá-la.

Eis os fantasmas que iriam dominá-lo vida afora e que haveriam de confundir-se com as páginas de Casimiro, treslidas entre poemas da antiguidade e lendas da terra incognita. Já grumete, o mar representaria, a seus olhos, força e poder.

Na sua mais eloquente acepção, associava o termo formidável ao ímpeto das águas nas calamidades anunciadas por relâmpagos e trovões: à fúria dos elementos, passaria a compreender, no confronto com o belo terrível, a grandeza do formidável. Entre a beleza e o belo, a forma e o formoso, Damião visitava o passado como se revesse o filme da própria vida. Lembrava, sim: lembrava para esquecer.

– Memórias? Não! Pra quê? Memória, memória apenas. Lembrança bastante da existência do demo e prova inda maior da bondade divina. Nada de gatafunho no papel. Por quê? E... por que não? Ora... ora... Não vê que sou filho de Deus? Ainda está pra nascer o cristão que anote no branco da página branca, linha sobre linha, mais alto que a zoeira do motim, as blasfêmias contra a Virgem e contra os santos. E as tempestades? E as velas que ardem? E os ramos sagrados da procissão do Encontro, guardados no oratório para conjurar o demo? E a peste? E a miséria? E o medo? Nada disso é coisa que se copie. Nem se leia. É heresia! É pecado! Demônio rondando, trevas se abrindo... É desabafo, palavra solta que se esquece com raiva e com tristeza, pra depois, muito tempo depois, lembrar e contar: contar de novo, diferente. Praguejando e benzendo-se, rezando, pedindo perdão a Deus pelo pecado... Mas esquecendo, esquecendo... Sempre.

É... faltava-lhe tempo. Faltava-lhe o desejo. Querer com vontade. Isso mesmo. Aquela gana que vem a quem escreve para poder resgatar, em silêncio, o que foi tumulto e violência, ansiedade e alumbramento.

Como enfrentar, sozinho, horas tardias, o vazio da ausência e o vozerio da vida? Como reter, no titubeio da lamparina, a emoção que escapa nas mal traçadas linhas, se lerdos são os dedos e a pena... indecisa?

Diante do acaso, e da fatalidade, em que prosa? Em que poema? Descrever o êxtase do “Terra!”, “Terra à vista!”, ou significar o desespero do “Alerta! A postos! Homem ao mar!”, “Homem ao mar! Não, não há trela capaz de reter num verso, mil versos, o avanço traiçoeiro da maré, nem papel que faça calar, em noite de vendaval, a fúria destruidora das vagas, estrugindo no casco, nas velas, no mastro, o clamor dos naufragados nas derrotas da vida...

Não, Damião não nascera para escrever: nascera para recitar, viva voz, o burburinho, as cores, os cheiros, a alegria, a fúria e o assombro, o ódio e a compaixão, que lhe abarrotavam, frementes, o cofre da memória. Essa, a sua riqueza: partilhada com os amigos diletos, multiplicada pela rosa dos ventos. Suas palavras corriam em catadupa, sem tropeço, da temeridade ao pânico, da coragem à contrição.

O velho marujo desenredava proezas tão surpreendentes quanto as rotas percorridas, tão fascinantes quanto os lugares visitados. Num gesto largo, em que tudo cabia, acenava com lendas e mistérios a terra por descobrir – um abismo sem fundo e sem nome no mapa. “Além, muito além da Taprobana”.

Transportados pelas suas aventuras, os amigos estremeciam ao nefasto reboo de icebergs desatados, queimavam-se no calor de lavas em cascata: o belo e o grandioso num mesmo quadro. No entanto... Como não! Amedrontava-os mais, bem mais que os prodígios desses relatos, as pausas inesperadas, o olhar distante, vago, que traziam à espinha o frio da coisa ruim e da catástrofe, a véspera do luto e das lágrimas.

Milagre? Graça de Deus? Punição? Ou... malefício do diabo?

Ninguém sai vivo, se Deus não é servido, dessas odisseias! – cochichavam. E ao comparar-lhe as viagens com as do Odisseu, o herói de quem o preceptor francês tanto falava, acabavam por entender, numa febril cumplicidade, que o mundo, do Atlântico ao Mar do Norte, do Pacífico ao Índico, tal como o viam dali, daquela sala mal iluminada, era cruel, inóspito e... vasto.

Depois de tantos perigos, que nada tinham de fábula, lá estava ele, são e salvo. Ao fim e ao cabo, respiravam todos, aliviados.

– Pau pra toda obra, pronto pra outra, Damião, vosso criado! – exclamava.

E em tom de desafio:

– Quem tiver coragem, monte a bordo! A mesa não é farta, mas o pescado salta ao prato!

– E... onde é que isso acontece? Quando?

– Pois... pois... Sempre! Em dia de maré ou maremoto.

Ninguém, é claro, se abalava a acompanhá-lo. O repto se perdia no ar, sem resposta. Mas os que sobreviviam aos desastres e naufrágios, mais reais que se presenciados, davam testemunho de que o orgulho, só o orgulho, o preservara da rendição ultrajante e da morte.

Era notório. Diferente da força bruta, superior, muito superior à tenacidade, a fé em si mesmo e na sua boa estrela – mais que uma estrela, uma constelação! – jamais o abandonara.

Ao resgate dos horrores de que saíra vitorioso, redobrava em confiança, energia e coragem. O passado vivido, e revisto, esse, sim, o seu melhor espelho. Espelho em que se contemplava inteiro, para o que desse e viesse: de pé.

À imagem refletida, Damião talvez perguntasse:

– Espelho meu, espelho meu, haverá marinheiro mais valente que eu?

Vamos à sua vida: mais curiosa, talvez, que os enredos fabulosos em que ele próprio se metia ao recordá-la.

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