Os estudos
culturais e interdisciplinares, os avanços da globalização e a relação entre
América Latina e Brasil trouxeram para o universo literário questões que, em
ensaios e na ficção, Maria José de Queiroz, já abordava há muito em sua obra.
Como escritora e intelectual no Brasil, sua obra se configura como um vasto
painel dessa rede inusitada de vozes, letras e imagens que é a América Latina, æreconhecendo,
no entanto, as diferenças e as heranças da cultura e das artes que aqui
aportaram com os conquistadores e que, deles, com eles e contra eles, pôde-se,
enfim, engendrar o novo continente
Ao
acompanhar o seu trajeto e refazer o percurso de cada livro seu no momento em
que me predispus a estudar o romance Joaquina, filha do Tiradentes,
1987,*
em minha dissertação de Mestrado, apresentada ao Curso de Pós Graduação em
Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG, não tinha ideia da
enorme riqueza que os seus escritos me proporcionariam. O romance lançou-me,
também, ao estudo da pintura, da música e da fascinante história de Minas
Gerais que permeia os seus escritos. Fez-me ler os relatos dos viajantes no
Brasil e reler os sermões de Vieira, descortinou para mim toda uma literatura
empenhada em rever e reler a ficção que se entrelaça aos acontecimentos
históricos e as artes em geral.
Joaquina,
filha do Tiradentes
inscreve-se nessa produção contemporânea caracterizada pelo entrecruzamento da
ficção com a História, da literatura e outras artes e campos do conhecimento.
Compõem-se esses textos de produtos híbridos, promovedores de um discurso
interdisciplinar que intenta, pela invenção e pelo preenchimento de lacunas
historiográficas, principalmente, suplementar ou mesmo reescrever o registro
ficcional.
A análise
dessas narrativas põe o leitor diante de textos tensionados pela preocupação em
recolher a crônica histórica e o desejo de preservar o passado. O trabalho
fabulador da ficcionista passaria, assim, por uma espécie de ambivalência: ser,
ao mesmo tempo, romancista e historiadora, ou seja, a voz que fala no romance
construiria sua trama a partir de elementos factuais apropriados da narrativa
histórica, e de elementos ficcionais, construídos pela imaginação.
Na
dissertação, originada dessa pesquisa, estudo essas delicadas relações entre
ficção e História, a partir do romance Joaquina, filha do Tiradentes. Ao
privilegiar nesse romance a História, a romancista busca recompor, com o maior
grau de verossimilhança possível, os contornos históricos do século 18,
conjugando-os com a composição de uma vida ficcional para Joaquina, a filha
bastarda do herói-mártir da Inconfidência, Joaquim José da Silva Xavier, o
Tiradentes. Ao fazer falar uma voz que a História "nem se lembrou de
esquecer", como afirmou Carlos Drummond de Andrade em um pooema dedicado a
Joaquina. A romancista promove, então, no texto uma série de convergências
entre os registros da Inconfidência e a invenção, cujo resultado é um texto de
requintada orquestração.
A relevante
produção de Maria José de Queiroz, cerca de trinta títulos, incluindo prosa,
poesia e ensaios críticos, é marcada por um constante exercício de estilo que
evidencia esse rigor com que a escritora delineia o seu trabalho. Pedro Nava
aponta essas qualidades de estilo da ficcionista mineira, salientando que
"catar, separar, escolher" são atitudes básicas da escritora e que esse
trabalho artesanal passaria por um empreendimento pautado pela erudição e pelo
requinte da elaboração pormenorizada de cenários e cenas da vida mineira.
Por caminhos e tinta de América
O espírito
crítico, indispensável ao ensaísta, tem dirigido a minha pena, e penas.
Contudo, a tentação da análise, rendida sempre à inspiração alheia, talvez me
leve a arar o meu próprio campo...
Maria José
de Queiroz é uma das raras escritoras brasileiras que são perfiladas pelo
rótulo, às vezes pouco lisonjeiro, de eruditas. A crítica feita a sua obra
ressalta, quase sempre, as qualidades do estilo e da prática da língua, como
salientou Pedro Nava, na apresentação do romance Homem de sete partidas,
publicado em 1980. Nava define-a como artista e artesã da palavra pela sua
perícia em:
catar,
separar, escolher a palavra adequada, o verbete justo, a expressão
insubstituível – ao seu manejo, num jeito que encanta pela simplicidade, pelo
correntio, que são o resultado do que é incansavelmente trabalhado até poder se
apresentar em estado de pureza e da supressão de todo o supérfluo.[2]
Esse
trabalho artesanal da escritora de catar, separar e escolher a palavra
insubstituível passa, certamente, pela idéia de perfeição e de concepção de um
empreendimento pautado pela erudição. O artesanato textual a que Nava se refere
não aproxima a construção do texto de Maria José de Queiroz de um fazer
literário descompromissado com os rigores da língua: Nava reconhece na autora
uma busca incansável pela palavra ideal. A fluidez do estilo não se distancia,
portanto, do uso de termos raros e pouco usuais do vernáculo.
O pitfall
em que cai o leitor, segundo Nava, é uma trama que pode ser construída a partir
da escolha do termo exato, da palavra que não pode ser outra. O uso obrigatório
de certos vocábulos instaura uma leitura decifradora, além de evidenciar o
rigor da autora que construiu o texto e que parece ter sempre em vista os
leitores ideais, capazes de ler o que não foi escrito e capazes de entender o
que não foi dito, como registra a dedicatória manuscrita feita ao Mestre
Frieiro, no livro Exercício de Fiandeira.
A tese de
doutoramento de Maria José de Queiroz, A poesia de Juana de Ibarbourou
(1961), e o livro de ensaios Do indianismo ao indigenismo nas letras
hispano-americanas (1962) põem em relevo a marca peculiar do seu trabalho:
a construção de um percurso voltado para um trato refinado tanto com a palavra
quanto com os temas escolhidos.
Desde o
estudo que enfoca a obra da escritora uruguaia Juana de Ibarbourou delineia-se
o corpus crítico-literário da escritora, suas preferências e modelos.
Empenhada em refletir sobre temas e aspectos culturais hispano-americanos,
Maria José de Queiroz inicia a sua obra em busca do que poderia ser visto como
um vasto painel literário cujo múltiplo e variado desenho comporta desde o
tango argentino – baile, canção e diabrura que desafia o tempo – até a comida,
iniciação e gozo impuro.
Em toda a
extensão dessa obra, há um esforço em elaborar, por meio de uma galeria de
temas, autores e livros, uma enciclopédia cultural da América Latina.
Revela-se, assim, o perfil de uma pesquisadora que pretende construir, tanto em
ensaio como em ficção, uma obra eminentemente voltada para um projeto crítico
da produção cultural dos países de língua portuguesa e espanhola na América.
Sua galeria de estudos se inaugura com A poesia de Juana de Ibarbourou.
O livro revela uma preocupação em delimitar, sob o título de
"Paralelos", a filiação da autora uruguaia, através da busca das
influências e fontes. Maria José de Queiroz empreende esse estudo ao buscar
seguir os fios de uma rede que o texto de Juana de Ibarbourou fornece. O laço
entre os textos e os autores arrolados pela ensaísta dá-se pela constatação do
espelhamento entre vida e arte, e como essa relação se manifesta numa
determinada época do processo de produção intelectual da escritora uruguaia.
Perpassa nesse olhar da ensaísta o desejo de atar as pontas da vida e da ficção
e uma preocupação que pode ser detectada em toda a sua obra: o arrolamento de
precursores e fontes da criação. Essa abordagem deixa transparecer, além de um
liame com a erudição – Maria José de Queiroz transita entre o texto analisado e
os que a ele fazem referência – , uma construção de retratos multidimensionais
e interdependentes da literatura da América Latina.
O conjunto
de ensaios intitulado Do indianismo ao indigenismo nas letras
hispano-americanas marca uma preocupação de Maria José de Queiroz com uma
certa "busca da expressão própria" do indígena na literatura
hispano-americana e brasileira. Apontados pela autora como duas pragmáticas
literárias, o indianismo e o indigenismo revelariam duas perspectivas distintas
de se encarar a figura do indígena.
Determinada
em delimitar esse retrato, a autora começa por historiar a descrição que dele é
construída desde a conquista da América. De acordo com a ensaísta, os autores
que deram relevo à figura do indígena, muitas vezes, afastados pela língua,
costumes e religião, recorriam a convenções literárias e utilizavam um senso
comum ditado pela imaginação para construir-lhes, na ficção, perfil e
figuração. Isso é feito, ora descrevendo-os por uma perspectiva que visaria
salientar o aspecto mítico do indígena, utilizando a idéia do heroísmo sob os
postulados de Rousseau, ora considerando-os como criaturas tristes e
miseráveis: nem mito, nem símbolo, nem herói. Espelhando-os como os espoliados
e explorados pelos brancos e esquecidos pela civilização dominante, a poética
indigenista também se afastaria do ideal de representação indígena.[3]
Diante dessa
face bifronte que Maria José de Queiroz apresenta, nota-se a denúncia de que
essa face seria esculpida pelo colonizador. A ensaísta amplia a questão quando
aponta para a necessidade de fazer-se ouvir a voz do indígena. A flecha no ar,
metáfora que a escritora denomina de "a expressão própria" do
indígena, passa por uma perseguição
a uma expressão universalmente válida, sem importar muito o fator geográfico,
que pode ser real, mas não é decisivo, ante a necessidade de expressar-se o
indivíduo, expressando-se a um tempo a esquiva realidade do mundo.[4]
Enquanto
reflete sobre a posição do indígena face às construções do imaginário do
colonizador, a ensaísta parece apontar para a possibilidade de construção de
uma escrita universal que, no entanto, reconheça as diferenças e não seja
disposta em um todo indiferenciado. Quando admite a alteridade do sujeito com a
conseqüente diferença nos discursos, a perspectiva do estudo torna-se mais
ampla e aponta para uma interdiscursividade, uma possibilidade de intercâmbio
entre as culturas.
No estudo
sobre Juana de Ibarbourou, Maria José de Queiroz adota um procedimento crítico
que vai marcar também seu trabalho com a obra de César Vallejo: a influência da
vida sobre a obra do autor. Na tese de doutoramento em que enfoca a escritora
uruguaia, sob o título "Autobiografia: vida e obra", a ensaísta busca
estabelecer as relações entre obra e escritor, a partir do postulado de Eduardo
Frieiro: "Para se
penetrar a complexidade dessas relações era preciso, primeiro, analisar e
definir o caráter do autor. Eis aí a dificuldade maior. A personalidade humana
é um mundo fechado a qualquer tentativa de reconhecimento."[5]
A partir
dessa perspectiva, a ensaísta aponta, em sua análise, o "tom confessional
e declaradamente autobiográfico" de Juana de Ibarbourou, terminando por
concluir que:
sua riqueza
em aspectos humanos, geográficos e temporais permite-nos avaliar a importância
da intromissão da vivência no domínio da experiência poética.[6]
No ensaio César
Vallejo: ser e existência, publicado em 1971, Maria José de Queiroz
continua a dar prioridade aos relevos autobiográficos que a obra literária pode
privilegiar. Segundo a ensaísta, o caráter sofrido da obra do poeta se
definiria pelos contornos reais da vida do autor peruano.
Distanciando-se
dos conceitos de “eu lírico” ou "sujeito poético", a ensaísta se
prende ao poeta enquanto autor e define, a partir daí, a sua "poética da
dor". Movido pela necessidade de comunicação, o poeta Vallejo nortearia a
sua poesia como uma atividade vital, lúdica e imprescindível. Além disso, sua
linguagem poética é pensada pela ensaísta como uma tentativa de ordenação do
caos interior do artista.
Em Vallejo,
Maria José de Queiroz descobre o valor do pormenor. Os horizontes da casa, do
guarda-roupa, das gavetas e dos armários, a secreta intimidade que garantiria a
consciência do sujeito passam a ser explorados em todos os seus trabalhos, a
exemplo de Vallejo. É a partir do autor peruano que Maria José de Queiroz
começa a arar o seu campo, tanto ensaístico como ficcional, inventariando
objetos e acessórios que funcionam como uma tentativa de estabelecer um ponto
de referência para o sujeito: "[...]
vestidos, sapatos, bolsa, certidão de nascimento, o azul dos olhos, o
comprimento dos cabelos e o tamanho das mãos. Eleva-os à categoria de
portadores de identidade. Acaba, por fim, reconhecendo-lhes valor existencial.
Privado deles, desconhece-se como homem." [7]
O
procedimento detectado em Vallejo pela escritora se incorpora à sua obra e lhe
confere um dos grandes méritos do seu trabalho, ou seja, a exploração dos
ambientes em sua constituição minimalista, com uma câmera que microscopicamente
emoldura e invade o cotidiano privado das casas, dos quartos, dos gestos e
olhares de cada personagem que cria.
Esses dois
perfis de escritores de língua espanhola na América – Juana de Ibarbourou e
César Vallejo – acabam por provocar a produção de uma série de ensaios que
foram publicados sob o título de Presença da literatura hispano-americana,
em 1971. Como um convite a "amigos de viagem por caminhos e tinta de
América", Maria José de Queiroz traça um percurso literário que começa por
enfocar o obstinado comportamento dos povos americanos de língua espanhola de
se ignorarem entre si. A ensaísta demonstra que também os brasileiros, talvez
no repúdio ao antepassado colonizador, revelam a perda da noção de parentesco.
Diz ela:
renunciamos
à Hispânia, berço comum peninsular, e confundimos, na renúncia, toda a
descendência continental que moreja e padece ao nosso lado. [...] Também ela, a
América espanhola, nos retribui na mesma moeda.[8]
Longe de
querer delinear um mapa de territórios hermeticamente enclausurados, Maria José
de Queiroz busca desenhar, com sua escrita, contornos literários que estimulem
o leitor a um livre trânsito entre países e livros. Leitor que atravesse esse
território não com passaporte de turista acidental, mas como portador de um olhar
que reconheça, as diferenças peculiares de cada texto e de cada autor,
estabelecendo conexões e vínculos com sua própria cultura.
Ao analisar
autores e suas produções literárias na prisão, Maria José de Queiroz faz outra
série de estudos, agora sobre o tema que dá nome ao ensaio: A literatura
encarcerada, publicado em 1971. Empenhada nesse projeto, a escritora se
detém sobre autores e obras que, em "prisão de corpos", encarregam-se
de criar "subterfúgios de liberdade" pela linguagem.
Dessa
galeria quase macabra, a autora ressalta que a literatura do cárcere –
memórias, cartas, confissões, libelos, denúncias e manifestos – esbarra em
censura, sigilo e em questões de segurança nacional, o que acaba por não
conceder a palavra ao réu ou à vítima. Além de grifar a fortaleza do espírito
humano, esses documentos introduziriam o leitor no território da Justiça e do
Direito. A literatura do cárcere permitiria, pois, um olhar sobre a realidade,
via ficção. É assim que, arando campos interdisciplinares, Maria José de
Queiroz busca criar um vínculo entre a produção do artista e o seu lugar na
sociedade em que vive.
Um
encadeamento pode ser, assim, traçado entre autores: cria-se uma relação,
aparentemente díspar, por exemplo, entre os escritos bíblicos de Paulo de Tarso
e as memórias de Graciliano Ramos. A inteligência como capacidade de adaptação
às circunstâncias marca esses "habitantes de aquários", essas
"aranhas fechadas num frasco", presos em "sarcófagos de cimento
e ferro" e em "submarinos em expedição".[9]
A
perspectiva inicial da escritora de que a obra literária dos autores estaria
vinculada a suas vidas os inscreve numa "história universal da
injúria", ou seja, os escritos do cárcere alcançariam valor de testemunho
político cuja importância histórica e arqueológica comporia o tecido de uma
nefasta memória.
A estréia de
Maria José de Queiroz como poeta e ficcionista acontece com a publicação de Exercício
de levitação, 1971, Exercício de gravitação, 1972 e, depois de Como
me contaram... fábulas historiais, 1973, Exercício de fiandeira, em
1974. Os três "exercícios" denunciam-lhe as leituras e os
entrecruzamentos de textos. Delineia-se, dessa forma, uma postura metodológica
em relação à palavra que lembra a pertinente observação de Pedro Nava quanto ao
rigor do estilo da autora. O vocábulo "exercício" remete o leitor a
uma prática escritural vinculada a uma perspectiva de aprimoramento, a um desejo
de alcançar certa perfeição que vem pelo contínuo refazer.
Exercício de
levitação, além de
revelar o fazer poético que, do ponto de vista da autora, constitui-se quase
como uma busca mística da palavra rara, indispensável, como demanda de uma
aprendizagem do fazer literário. Já Exercício de gravitação é construído
sob perspectivas e signos de escritores latino-americanos. Elegendo temas e
imagens desses autores, Maria José de Queiroz pensa, em "um livro como
todos os livros, e o fogo como todos os fogos e de um morto, todos os
mortos"; como queriam Borges e Cortázar.
Ao trançar o
seu texto com outros textos, a escritora apropria-se de uma galeria de poetas,
denunciando-lhes uma "fome universal", uma grandeza que se insinua
num grão de mostarda. Calderón, Hernani Cidade, Henriqueta Lisboa e Carlos
Drummond de Andrade são evocados nesse livro e, no último poema, dedicado a um
anônimo "colecionador de melancolias", vislumbra-se um emaranhado de
signos que apontam para um lirismo em que "fantasmas habitam castelos onde
deixaram suas almas". Os livros se apresentam como corpos vivos numa
biblioteca imaginária carregada de sons que são guardados pela memória da
leitora Maria José de Queiroz.
No Exercício
de fiandeira, marcado pelo tom do refrão "fia, fia, fiandeira, tua
roca em monotonia", espelham-se escrita e escritura. O fazer literário,
via poesia, é ilustrado e recuperado como texto artificiosamente construído. A
palavra poética reflete, por citação entrecruzada em epígrafe ou no corpo do
poema, o registro de leituras da autora. Memórias de outros autores e de outros
textos, de viagens e de pessoas, embaralham-se na trama poética, como para
suprir uma grande ausência que insiste em transformar o tecido literário numa
renda: um texto filigranado e roído pelo tempo.
O livro Como
me contaram... fábulas historiais, publicado durante a produção dos três
exercícios poéticos, é um conjunto de histórias e fábulas recolhidas por uma
narradora que se encena como uma cronista de Minas Gerais. O subtítulo
"fábulas historiais" deve-se ao estudo feito pela escritora sobre
Garsilaso de la Vega. No ensaio sobre o escritor, Maria José de Queiroz
esclarece que as suas crônicas eram assim designadas porque, a um tempo,
poderiam ser reais ou fabulosas, o que seria uma precaução contra possíveis
críticas à autenticidade dos depoimentos por ele arrolados. Com o uso da
expressão de Garsilaso de la Vega, Maria José de Queiroz imprime em suas
narrativas o mesmo tom indefinido entre verdade e ficção. A partir dessa
chancela, a narradora passa a registrar relatos ouvidos de habitantes de
cidades do interior de Minas, sem a preocupação de ser copista fiel dos
relatos.
O projeto da
escritora é recuperar parte da memória cultural e histórica de Minas através da
ficção, sem o rigor historiográfico tradicional. Pelas narrativas orais que não
estão sujeitas ao encarceramento de datas, fatos e documentos precisos, ela
acaba por compor um mosaico cultural das Minas Gerais. Todo o valor dos dados
factuais é desconstruído pela narradora que, travestida em cronista familiar,
registra, aparentemente sem nenhuma pretensão histórica, casos de Minas,
lembranças estruturantes do imaginário cultural mineiro.
Qeiroz resgata a palavra "amor" em Resgate do real:
amor e morte: Amor, amoris. Nesse livro de poemas ela explora
poeticamente o tema da morte nas mais variadas culturas e significações. De
Osíris ao canto do cisne, ela concebe uma série de poemas que buscam desfiar a
trama da morte presente desde a cultura egípcia até às lendas chinesas. A morte
é encenada como um "resgate do silêncio" daqueles que já não têm mais
voz.
Em Para
que serve um arco-íris?, escrito no verão de 1974, em Paris, ela manipula
palavras que deixam entrever um apelo ao sentido da visão do leitor; por
exemplo, no poema homônimo, ela brinca com versos como:
André deu o
nó à gravata
e olhou-se
no espelho;
Joana
prendeu aos cabelos seu laço de fita;
Colar de
três voltas, brincos, pulseira,
Emília
ajeitou o vestido,
sorriu
satisfeita.
Arco-íris de
alegre bonança
coloriu a
tarde chuvosa.[10]
O tecido da
gravata, do vestido e do laço de fita alia-se ao colar, brinco e pulseira.
Todos esses vocábulos e expressões são sintetizados pela imagem do arco-íris,
alegria e bonança que colore a tarde cinza. De volta à prosa, Maria José de
Queiroz empreende uma aventura bilíngüe em Ano novo, vida nova, 1978.
Romance em que a escrita se desdobra e se faz metalinguagem. Em cenário
parisiense, ela urde uma trama amorosa em que a personagem-narradora reflete
sobre a possibilidade de escrever uma história em português e em francês. O
duplo registro da linguagem confere ao texto um caráter de charada, de esfinge,
que faz vislumbrar a complexidade do fazer literário.
A invenção
da narrativa e a distância entre o sentir e o dizer chegam ao ponto máximo no
enredo de Invenção a duas vozes, 1978. Presos, durante o carnaval, no
espaço limitado do banheiro, um casal reflete sobre a vida e as representações
sociais. A máscara familiar é atacada na mesma proporção em que a tensão entre
os personagens delineia a escrita. O texto contido e censurado é espelhado pelo
espaço físico reduzido em que os personagens, enclausurados, revêem o sentido
do casamento e da comunicação.
De um
romance que tem como cenário o espaço exíguo de um banheiro, Maria José de
Queiroz parte para a construção de outra narrativa que abre roteiros para as
terras sul-americanas. Em Homem de sete partidas, Bernardo é uma
personagem que busca o tio desaparecido para desvendar-lhe a vida e
conhecer-lhe as aventuras. A partir desse pretexto, a escritora sulca sobre os
campos da América Latina um mapa cujo risco tenta conduzir narrador e leitor a
uma viagem por entre as andanças de um personagem andarilho.
Se em Como
me contaram... fábulas historiais, Maria José de Queiroz compõe um mosaico
de histórias, pequenas narrativas em que se costuram casos e pertences
mineiros, em Joaquina, filha do Tiradentes, 1987, a construção desse
mosaico concentra-se no entrecruzamento da ficção com o fio temático do
acontecimento histórico da Inconfidência.
A
personagem-narradora do romance encena a romancista-historiadora transitando
entre o registro asséptico da história e a invenção livre engendrada pela
escritura. Suas atividades de bordadeira, costureira e copista espelham o
trabalho de corte e costura de textos e a atividade da enunciadora do discurso
em sua tarefa de construir de viés uma história entremeada de fato e invenção.
A Joaquina,
filha do Tiradentes segue-se o romance Sobre os rios que vão, 1990,
com o qual Maria José de Queiroz oferta aos amigos judeus sefarditas uma
narrativa permeada de metáforas estruturantes do imaginário judaico.
Desdobrando os versos "Babel e Sião", de Camões, ela empreende a
construção de um texto que faz circular signos como o exílio, a duplicidade do
nome próprio e a condição de estrangeiro dos sefarditas. A língua hebraica
aparece como um significante que aponta para uma espécie de heterogeneidade, da
qual o povo judeu poderia ser metáfora.
A literatura
alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura, 1990, é uma coleção de ensaios que tematizam a
literatura e as relações entre escrita, drogas e loucura. Na esteira de A
literatura encarcerada, essa obra expõe, também como uma galeria, autores e
poetas que empreenderam uma "viagem" pelo mundo das letras.
Construindo um mapa das exaltações artificiais usadas pelos escritores na
literatura, a ensaísta analisa a droga enquanto uma metáfora com a qual o homem
procura intoxicar-se a fim de escapar à opressão e à dor.
Em A
literatura e o gozo impuro da comida, 1994, a escritora revela na cozinha
delirante da literatura – e sob os olhares ávidos do leitor – a mesa e suas
relações com a arte, desde Homero até Pedro Nava, passando por Eça de Queirós e
Machado de Assis. Esses ensaios, juntamente com A comida e a cozinha:
iniciação à arte de comer, 1988, que os precedeu, indicam uma preocupação
estética que busca delinear a mesa na literatura e ampliam um projeto iniciado
por Eduardo Frieiro em Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos
mineiros.[11]
Ao compor um cardápio da mesa mineira, o autor lançou as bases para a pesquisa
que Maria José de Queiroz, posteriormente, desenvolveu e à qual deu dimensões
cosmopolitas.
Em A
América: a nossa e as outras, 1992, a escritora estuda o ponto de vista das
nações colonizadoras em relação à América. O Velho Mundo, segundo sua
perspectiva, vê nosso continente como "uma América em retalhos", um patchwork
composto de tecidos diversos, de cortes aparentemente pouco seguros. A produção
intelectual e artística da América Latina estaria, assim, fadada a figurar na
banca dos refugos, em relação ao Velho Mundo.
Reverter
esse ponto de vista requer uma possibilidade de encontro dos países do Novo
Mundo, a realizar-se no território de papel da literatura, em que letras e
tintas das Américas possam confluir numa polifonia, numa variedade de sentidos,
arremata. Nesse lugar privilegiado, peruanos, argentinos, chilenos e
brasileiros poderiam reconceituar a própria produção artística e literária, e
assim redescobrir a si próprios no convívio e no entendimento coletivo.
A América em
retalhos, imagem que Maria José de Queiroz utiliza para pensar a condição
americana, produz-se entre as meadas da narrativa, como que fora da linearidade
que é cobrada do latino-americano: segundo a escritora, uma narrativa em
labirinto de mil babélicas vozes, amarradas no texto e trazendo cada uma o seu
sentido, poderia acabar por conferir uma significação ao todo.
Uma produção
assim, embora fragmentada e estilhaçada, ostentaria, em paralelo, vozes
distintas, multilíngües, e o leitor seria um andarilho pelas terras
latino-americanas, aprendendo a costurar o tecido colorido das letras da
América.
A variedade
de temas abordados por Maria José de Queiroz, tanto em sua obra ensaística como
na ficcional, aponta para um mosaico que a escritora compõe e com o qual
constrói o pitfall a que se referia Nava. Delineia-se, a partir desse
vocábulo, o caráter de trama e enredamento em que o leitor se vê envolvido. No
exercício de fiar o texto, a escritora arma uma estrutura que se oferece ao
leitor como urdidura, trama que convida e instiga o leitor a deslindar as suas
estratégias de elaboração.