Impregnado da leitura dos escritores russos, especialmente de Dostoievski, O cemitério dos vivos sugere, no jogo de palavras - cemitério/casa, vivos/mortos, o parentesco entre a prisão e o asilo de alienados e uma resposta em contraponto às Recordações da casa dos mortos. Seu principal intuito parece ter sido o de evidenciar a exproriação da vida por parte da instituição cujo ofício é curar, e não segregar nem exterminar.
Excluído da sociedade, morto a seus olhos (como habitantes do cemitério dos vivos), vale-se Lima Barreto da momentânea experiência da loucura para observar os mecanismos de comportamento dos companheiros de infortúnio. Desempenha, para isso, de modo dramático, o papel de alienado.
QUEIROZ, Maria José de. A literatura alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura. Rio de Janeiro: Atheneu Cultura, 1990, p. 136.
quinta-feira, 14 de outubro de 2010
domingo, 7 de fevereiro de 2010
A língua capta o mal
A língua capta o mal, é certo. Impregna-se dele. Os povos primitivos, estranhos à galáxia de Gutenberg, os judeus, os russos, os orientais e indianos provaram-lhe a crueldade. A língua do colonizador, do tirano e do opressor traz, na sintaxe e no léxico, os vergalhões da soberba, da ignomínia e do nojo. Mas só os profissionais da palavra estão aptos a senti-los com absoluta fineza. Quando podem, alijam, de vez, a língua e o mal. O que é difícil. O mundo é pequeno e as línguas de cultura se não estão já estiveram a serviço da opressão, da tortura e da morte. E, afinal, a beleza também se expressou em todas elas e nenhuma houve que não nos desse a conhecer o bem, a verdade e a justiça.
QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou A literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, p. 17.
sexta-feira, 15 de janeiro de 2010
Fulgurações da imaginação
Um amigo meu, dado a esoterismo e fenômenos parapsicológicos, não teve dúvida em classificar esse decalque inexplicável de Olov a Ostrov, ou vice-versa, como "fulgurações da imaginação". Quando lhe perguntei o que entendia por isso, ele me respondeu que são como spots ou clarões que nos põem em contato com tudo o que se passa no universo. Uma espécie de sexto sentido, ou intuição criadora, que nos transporta a formas de conhecimento total. No entanto, imperfeitos que somos, não atingimos o absoluto: nosso conhecimento padece intermitências. Não há revelação total, mas parcial. Por isso, talvez fosse mais correto falar de relâmpagos de vidência ou breves iluminações. A criação do príncipe Olsztyn, personagem de ficção, entretanto vivo em alguma parte do globo, seria um excelente exemplo de como isso ocorre: só me haviam chegado, mercê de breves iluminações, certos episódios de sua vida. O demais continuara oculto no magma universal. Quando se rompe, em súbitos clarões, o véu que o encobre é que acontecem as chamadas "fulgurações da imaginação".
QUEIROZ, Maria José. Vladslav Ostrov, príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.33.
O mapa da América do Sul
A alguns metros de distância da cama, bem à vista, o mapa da América do Sul, pontilhado de alfinetes de cabeça redonda, colorida, sugeriam o roteiro ideal. As amazonas, o império incaico, o ouro, a Conquista, a floresta, o rio-mar nada mais eram que território imaginário, de fronteiras limitadas. [...] Rosto sem traços, personagem de morte obscura, titio tomara caminho ignorado, fundindo-se às sombras da noite amazônica. Traição grande, enorme, a que sofri. Por que não deixou para desaparecer depois da nossa viagem?
QUEIROZ, Maria José. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, p. 35. (Romance)
terça-feira, 25 de agosto de 2009
Todo en ti fue naufragio...
Todo en ti fue naufragio.
(Pablo Neruda)
Alucinações de velas:
na rosa dos ventos
a incoerência de baldos caminhos.
Entre vaga e espuma
se apaga o itinerário do milagre;
entre céu e nuvem se esvai
a linha fluida do mapa mítico.
Ausência de bússola
no oceano aberto
a todos os navegantes.
No rebanho de estrelas
o equívoco se esconde
atrás de cada constelação.
Nunca de núncaras
em todos os horizontes,
conspiração de jamais
na encruzilhada líquida.
Naufrágio.
Paris, 11.05.70
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 80.
Quem é quem
A rosa dos ventos, o mapa mundi,
os roteiros todos da Ásia,
as quatro esquinas da Europa,
as três Américas, a África...
Sobre caminhos ásperos, o terror e o perigo,
o engano, a dúvida, a suspeita.
Ao abrigo do tempo,
e da geografia adversa,
o real e o irreal se confundem
sem qualquer estremecimento.
O fictício e o vivido,
o símbolo e a coisa,
o ser e o mito,
submersos em sono letárgico,
repetem, cansadamente,
uniformes alegorias.
À mercê da imagem criada,
Dulcinéia, personagem,
autoriza desvarios.
Cobri-la com a própria pele,
arrancar-lhe máscara e traje,
vê-la com os olhos de Sancho
- vulgar, indigna?!
Ou contemplá-la, ainda,
grande senhora,
buscando a coerência sutil
entre o destino mesquinho
(puro aleive!)
e a alucinação do sonho imperecível?
Mensageira de ilusões,
onde procurá-la?
Na Mancha? No Toboso?
em Pequim? No Haiti?
Que voz fatal e fria
nos denunciará seu rumo
ou domicílio?
O que se diz, bem o sabemos,
não é o que se pensa;
nem aquilo que se pensa,
adverte-nos,
é o que se diz.
O que se olha não é o que se vê, exorta o sábio;
ao que o cético acrescenta - o Eu é sempre o Outro
(verdade ambígua).
O discurso e suas metáforas
não são senão pretexto
- fábula ou apólogo,
para noite longa, de inverno,
dedicada à ficção e aos seus prestígios.
O Eu verdadeiro não existe.
E..., se existe, não está aqui.
Talvez, quem sabe?
em Singapura, no Toboso,
na Mancha (num lugar de que nem me lembrar quero...),
em Roma ou...
em Paris.
Paris, inverno de 1976/77.
QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1982. p. 15-16.
o símbolo e a coisa,
o ser e o mito,
submersos em sono letárgico,
repetem, cansadamente,
uniformes alegorias.
À mercê da imagem criada,
Dulcinéia, personagem,
autoriza desvarios.
Cobri-la com a própria pele,
arrancar-lhe máscara e traje,
vê-la com os olhos de Sancho
- vulgar, indigna?!
Ou contemplá-la, ainda,
grande senhora,
buscando a coerência sutil
entre o destino mesquinho
(puro aleive!)
e a alucinação do sonho imperecível?
Mensageira de ilusões,
onde procurá-la?
Na Mancha? No Toboso?
em Pequim? No Haiti?
Que voz fatal e fria
nos denunciará seu rumo
ou domicílio?
O que se diz, bem o sabemos,
não é o que se pensa;
nem aquilo que se pensa,
adverte-nos,
é o que se diz.
O que se olha não é o que se vê, exorta o sábio;
ao que o cético acrescenta - o Eu é sempre o Outro
(verdade ambígua).
O discurso e suas metáforas
não são senão pretexto
- fábula ou apólogo,
para noite longa, de inverno,
dedicada à ficção e aos seus prestígios.
O Eu verdadeiro não existe.
E..., se existe, não está aqui.
Talvez, quem sabe?
em Singapura, no Toboso,
na Mancha (num lugar de que nem me lembrar quero...),
em Roma ou...
em Paris.
Paris, inverno de 1976/77.
QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1982. p. 15-16.
quarta-feira, 12 de agosto de 2009
Body language
O corpo se esconde:
na fralda nos panos,
nas pregas, nas sedas,
nos chales, nos mantos.
A roupa veste, iguala, disfarça.
Segue-se a moda.
Copiam-se moldes:
cortes, costuras,
rendas e franjas,
toga e mortalha.
Isentos de pudor e recato,
o olhar, o gesto, a fala,
a cadência do passo,
frequentam, ilesos
- prodigiosa nudez do acaso!,
a selva, a cidade,
a platéia, o palco.
Nu ou vestido,
o homem se despe
de esgarçada humanidade:
o que o hábito encobre
o rosto revela,
as mão declaram,
os pés recalcam.
História de longo idade
lê-se na testa,
nas rugas, nos lábios.
Nas palmas abertas,
nos dedos, nos calos,
nas unhas em garra:
mapa e itinerário.
No balanço dos ombros,
no andar lesto ou tardo
a vocação da distância,
a sedução da querência,
o gosto da demora:
a permanência e a partida
respondem a tempo e compasso.
O corpo esconde suas vergonhas
em sigilosa intimidade.
Claro tecido,
luto fechado
calam o escândalo
da carne frágil,
da pele incauta.
Mas, rebelde a todo véu,
despida de luxo e gala,
a alma nua - ritmo, olha e palavra -
proclama a sua verdade.
Belo Horizonte, 1973.
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra, 1974. p. 29-31.
Ao passado, os seus despojos
Inútil procurar-nos
onde não estamos.
Inútil abrir janelas
sobre o campo santo.
No frio retrato
de traço imóvel
o perfil chato, plano.
No redondo invisível,
o melhor ângulo.
No gosto da meninez,
recuperado no bolo,
a fábula literária,
a ficção e o engano,
a justificação do ócio
que fabrica dignidade
à custa da memória
e raparigas em flor.
Na água turva do tempo
Narciso se contempla:
a muitas imagens passadas
outras tantas acrescenta.
Qual a verdadeira
se em todas se perdeu
em em todas se reinventa?
Se o pecado se nutre do hábito
e o demônio persiste no erro,
por que repetir o ontem
fechando em aperetado círculo
meros fantasmas de nós mesmos?
Nosso melhor retrato
- gesto, voz e enredo -
foge da linha e do quadro,
faz-se e refaz-se no ar,
dissipa-se no vento.
Inútil fixá-lo em cores,
inútil dizê-lo autêntico.
Além da imagem provável,
no presente fugidio
ou num futuro talvez,
a nossa efígie verdadeira,
vulto incoerente.
Aí nos escondemos:
no traço impreciso
(sempre a desenhar-se),
o mais perfeito.
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra, 1974. p. 14-15.
domingo, 9 de agosto de 2009
Todos os aromas e sabores na poesia uruguaia
Todos os aromas e sabores da natureza visitam a poesia de Juana de Ibarbourou. Sensibilizaram-na a doçura do mel, o amargo do fel, o perfume e o colorido de todos os frutos e flores. A cesta de frutas e o mel provocam-lhe o paladar:
"El deseo me eriza la piel.
"El deseo me eriza la piel.
Comeré? Beberé?"
Às vezes, um desejo insólito se manifesta:
"Morder musgos rojizos y ácidos".
Gostos estranhos vêm-lhe à boca:
"Hay un sabor de algas mínimas y remotas..."
ou
"Me asaltó la garganta un sabor de ceniza".
Mas o maior prazer é o de comer, "de la carne jugosa de las fresas" e penetrar os "dientes sanos y agudos en la carne compacta de un durazno".
QUEIROZ, Maria José de. A poesia de Juana de Ibarbourou. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1961. p. 92-93.
domingo, 2 de agosto de 2009
César Vallejo, poeta maior das letras peruanas
Para situar-se como homem num mundo de homens, César Vallejo trata de definir-se como criatura em estreita relação de dependência com o Criador. Dessa definição resulta a lavratura do atestado de nascimento em amargos termos:
"Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.
Todos saben que vivo,
que soy malo; y no saben
del diciembre de ese enero.
Pues yo nací un día
Que Dios estuvo enfermo.
...
Todos saben que vivo,
que mastico... Y no saben
porque en mi verso chirrian
oscuro sinsabor de féretro,
luydos vientos
desenrroscados de la Esfinge
preguntona del Desierto.
...
Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo,
grave."
QUEIROZ, Maria José de. César Vallejo: ser e existência. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 25-26.
"Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.
Todos saben que vivo,
que soy malo; y no saben
del diciembre de ese enero.
Pues yo nací un día
Que Dios estuvo enfermo.
...
Todos saben que vivo,
que mastico... Y no saben
porque en mi verso chirrian
oscuro sinsabor de féretro,
luydos vientos
desenrroscados de la Esfinge
preguntona del Desierto.
...
Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo,
grave."
QUEIROZ, Maria José de. César Vallejo: ser e existência. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 25-26.
Indiferença e ignorância
Perdemos nós, os brasileiros, no repúdio ao antepassado, a noção do parentesco. Renunciamos à Hispânia, berço comum peninsular, e confundimos, na renúncia, toda a descendência continental que moureja e padece ao nosso lado. Citam-se com dificuldade um Oliveira Lima, um Manuel Bonfim ou um Sílvio Romero a interessar-se pelo mundo hispano-americano. Atualmente lembraríamos Manuel Bandeira, Sílvio Júlio, Ivan Lins, Eduardo Frieiro, Henriqueta Lisboa. Também ela, a América espanhola, nos retribui da mesma moeda. Não nos aventuramos além de Machado de Assis e Jorge Amado. Desdém? Por certo, não. Indiferença nascida da ignorância. Ignoram-se entre si os povos de fala castelhana. Argentinos e uruguaios leem com mais facilidade os bons autores franceses e ingleses do que os escritores peruanos, mexicanos, chilenos ou bolivianos, e reciprocamente.
QUEIROZ, Maria José de. Convite à literatura hispano-americana. In: ______. Presença da literatura hispano-americana. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1971. p. 11-12.
quarta-feira, 29 de julho de 2009
O regresso dos dispersos
Antes das primeiras referências às suas relações com Israel, essa grande cidade da Mesopotâmia já aparece na história sagrada. Porquanto Babel é nome hebreu de Babilônia, a famosa torre de que fala o Gênesis, onde "o Senhor confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra e foi também dali que o Senhor os dispersou por toda a terra (Gn 11:1-9). Símbolo da idolatria, a torre (que é a torre de escadas do templo de Babilônia - ziggurat) figura, por extensão, o orgulho humano. E a tradição bíblica assimila a descomunal dimensão de tão inútil projeto à confusão das línguas; ao destruir a torre, Deus castiga a vaidade e o orgulho dos homens. (...) Os rios que correm de Babilônia se engrossam então com as lágrimas do degredo (Sl 137 ou 136). Entretanto, ainda que padecido como castigo, o exílio visa a um bem maior: o perdão. Sair de Babilônia significa não só a libertação como também, e principalmente, a remissão do pecado e a renovação da aliança com Deus. À ordem de deixar a cidade - "Saiam de Babilônia!"(Jr 50:8), "Em nada toquem de impuro!" (Is 52:11) - sabe-se chegada a hora de seguir para Jerusalém. Com o coração novo, o povo de Israel apresenta-se para o regresso: "o regresso dos dispersos".
QUEIROZ, Maria José de. Introdução. In: ______. Os males da ausência ou A literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 23-24.
terça-feira, 28 de julho de 2009
A ordem da paixão
Não há interpretação, leitura ou tradução para a vertigem alucinante. Aquele que a experimenta não faz senão integrá-la, assimilando-a aos mecanismos de conduta. Encontra-se, na própria experiência, o "significado soberano" (para retornar a expressão de Lacan acerca do estado poético). O sujeito aparece, portanto, como aquele que sente - o paciente, veículo ou instrumento da força superior, à qual tampouco compete definir ou explicar, porque transporta em si mesma toda a sua essência, e a viver a "diferença", inscreve-se numa ordem inédita, infensa às articulações do significante e do significado: a ordem da paixão (no sentido primitivo do termo - passio, passionis).
QUEIROZ, Maria José de. A inutilidade da retórica, a deleitação gozosa. In: ______. A literatura alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura. Rio de Janeiro: Atheneu Cultura, 1990. p. 35-36.
segunda-feira, 27 de julho de 2009
Aos pobres, a força dos Evangelhos
Nunca faltaram aos pobres a força dos Evangelhos nem a eficácia metafórica do Apocalipse. As oligarquias opulentas tinham sempre pela frente o sacerdote virtuoso, o monge descalço, o ermitão inflamado para lembrar-lhes as bem-aventuranças, o juízo final, o fogo do inferno. Foi esse o levedo que fermentou a massa, o caldo em que se curtiu a mágoa dos humildes mas que também cozinhou, em muitas ocasiões, a explosão homicida da revolta. (...) Ao longo dos anos, pobre (substantivo ou adjetivo) adquire acepções contrárias de potens (potente, poderoso), miles (soldado), civis (cidadão). É sinônimo de debilis (débil, fraco, enfermo, deficiente físico) e de humilis - humilis homo - homem vil; humili loco natus - de baixa condição.
QUEIROZ, Maria José de. Quem tem medo dos pobres? In: ______. Em nome da pobreza. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006. p. 63.
Vieira diante do Santo Ofício
Quando um Padre Vieira, por exemplo, tenta defender-se perante o Tribunal do Santo Ofício (Coimbra, setembro de 1665), no processo contra ele movido como autor de Esperanças de Portugal ou Quinto Império do Mundo, não podemos esquivar-nos ao interesse das proposições censuradas pela Inquisição. Sua Representação, endereçada aos inquisidores, obriga-nos a frequentar o território que lhe deu origem, o que lhe restringe, singularmente, as dimensões. No isolamento da cela, desprovido de livros que pudessem informar-lhe a defesa, e sem outro recurso que o do Breviário, de bem pouco préstimo, Vieira insiste na pregação contra o racismo (o anti-semitismo, especialmente, de tão fundas raízes no fanatismo nacional). (...) Forçado pela notícia de que as censuras do Tribunal teriam recebido a sanção do Sumo Pontífice, declara, no dia 19 de agosto, renunciar, não só a defesa das suas proposições, mas "ainda de as querer explicar ou declarar o sentido delas, como até agora ia fazendo no decurso do processo". No dia 23 de dezembro ouve, de pé, durante duas horas, a leitura da sentença, sem empunhar, por especial clemência, a vela sagrada. Condenado à perda da voz ativa e passiva, proíbem-no de subir ao púlpito. E seu domicílio, ainda que em colégio da ordem, fica a juízo do Tribunal.
QUEIROZ, Maria José de. Da cicuta à poesia, ou os subterfúgios da liberdade. In: ______. A literatura encarcerada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. p. 29-30.
A cozinha e a literatura
A Grécia autorizou, muito coerentemente, que se prestigiassem, ao lado dos seus sete sábios, os seus sete cozinheiros. O maior deles, ao que nos conta Eça de Queirós, era Aegis, de Rodes, o único mortal que sabia assar sublimemente um peixe. (...) Entre os romanos as escolas de cozinha eram mais numerosas (já sob Cláudio) que as de filosofia e de gramática. (...) De todos esses cozinheiros, os mais notáveis foram os Apicus. O último deles, o mais célebre de tão ilustre estirpe, foi quem redigiu, para a glória da cozinha da Antiguidade, a obra monumental, Da arte culinaria - Re culinaria, que inclui copioso receituário das iguarias em voga e que nos oferece um vasto panorama das preferências alimentares dos romanos (...). À leitura da Arte culinária de Apicus convencemo-nos da propriedade da observação de Carême quanto à importância da cozinha. Sentenciava com sabedoria o mais afamados dos tratadistas franceses: "Quando não houver cozinha no mundo, não haverá literatura, nem inteligência brilhante e rápida, nem inspiração, nem relações duradouras; não haverá tampouco unidade social." Tudo isso se aprende nas entrelinhas dos livros que tratam de cozinha e de gastronomia.
QUEIROZ, Maria José de. Da arte culinária à gastronomia. In: ______. A comida e a cozinha ou Iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 62-63.
À mesa com Machado de Assis
Machado instruiu-se convenientemente sobre as excelências da mesa. Começa por empregar, em português, a expressão boa chira, para bonne chère: o Palha, do Quincas Borba, "era dado à boa-chira", Custódio, do conto "O empréstimo", tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa-chira (...)". Cita os templos da gastronomia parisiense, o Véry e o Véfour, lembra a cozinha dos palácios do Conde Molé e do Duque de la Rochefoucauld. Condena "a corrupção dos tempos" que trouxe ao Rio o hábito do sanduíche e do bife cru. Cioso dos nossos costumes e origens, advoga a causa da doçaria nacional e, particularmente, a arte do arroz-doce. Numa visível intimidade com os fastos gastronômicos, anuncia numa crônica de 1878: "Hoje é dia de festa cá em casa: recebo Lúculo à minha mesa". Compõe, para essa festa, cardápio especial: "Línguas de rouxinol", "Coxinhas de rola", "Peito de perdiz à milanesa", "Faisão assado", "Pastelinhos", "Compota de marmelos", "Brinde final". Seguem-se, ao título dos pratos, comentários e observações sobre eventos e notícias da atualidade.
QUEIROZ, Maria José de. A literatura e o gozo impuro da comida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p. 222-223.
domingo, 26 de julho de 2009
Canetti e a formação de uma matilha
Privam-no do direito de levantar o dedo na sala de aula, sob o pretexto de que a exibição de saber inibia os alunos mais tímidos. Por trás do preceito didático (democraticamente nivelador e de evidente exaltação da mediocridade) escondia-se, sorrateira, a garra do anti-semitismo nascente. Sefaradita, de cidadania búlgara, meio turca e meio espanhola, a família Canetti jamais provara qualquer discriminação na Bulgária, país natal do jovem Elias, nem na Inglaterra, para onde se expatriara em 1911. As palavras secas do professor - "Você levanta o dedo demais!" - paralisaram-lhe o braço. "Também perdi a alegria - confessa - e a escola já não me dava prazer. Em vez de esperar pelas perguntas durante as aulas, eu agora esperava pela próxima chacota durante o recreio. Toda observação de desprezo pelos judeus provocava em mim idéias contrárias. Eu tinha vontade de retrucar tudo aquilo, mas para isso não havia oportunidade, pois não se tratava de uma discussão política, mas sim, como eu diria hoje, da formação de uma matilha".
QUEIROZ, Maria José de. Elias Canetti: entre a palavra e a letra. In: Refrações no tempo: tempo histórico, tempo literário. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 119-120.
Enciclopédia analítica das perversões
A crueldade expulsou a violência e, com ela, a gana de peleja, de luta e de vitória. Os Borges aguerridos, os Quirogas, os Fierros, os caçadores de esmeraldas e a jagunçada do sertão, os Cabeleiras, os Lampiões, os Riobaldos e os Mirongas, os bad bad men e, também, os bad good men, os Jerônimos e os últimos moicanos recolheram-se às páginas do folclore, do romance histórico, da literatura de cordel ou aos clássicos do western. Antes de chegar à América, a violência já percorrera, cabo a rabo, as epopeias gregas, os cantares de gesta e a Bíblia, ocupara os historiadores e os teólogos. Animara, entre nós, debates e discussões, preocupara a Igreja e a Coroa espanholas, lograra interromper o curso da Conquista. A literatura, as artes plásticas e o cinema reelaborariam, incenssantemente, toda a sua feroz intensidade trágica. (...) a literatura da crueldade exibe, sem pudor, a exceção monstruosa, o crime, o desregramento do sexo, o alcoolismo, as drogas, a prostituição e os vícios inconfessáveis. (...) Já não se escrevem romances, produzem-se thrillers. (...) Abre-se, generosamente, para pesquisadores e aficionados, a enciclopédia analítica da gênese e multiplicação das perversões".
QUEIROZ, Maria José de. Tempo e violência. In: Refrações no tempo: tempo histórico, tempo literário. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 58-59.
Desgosto de filha: Joaquina, filha do Tiradentes
Sei de memória, não só a condenação mas também as inesgotáveis formas por que se expressam o desprezo, a humilhação e a desonra. Conheço as mentiras da história, a hipocrisia dos patriotas, a peçonha das letras escritas, os rumores malignos, o escárnio e o medo. Aprendi, desde menina, que a vergonha da origem bastarda fere menos, muito menos, que a infâmia decretada por sentença e consagrada pela fraqueza dos covardes. Não, o tempo não lhe consumiu o corpo amaldiçoado. Vejo-o agora, vejo-o aqui. E sua cabeça, exposta ao opróbrio, seu rosto – tão semelhante ao meu, inicia a eternidade da pena crismando, no golpe de ódio do poder, o gesto de misericórdia do carrasco. Vejo-me nele. E ele, em mim, abre os olhos para a vida e para a desgraça que nos cerca. Um dia, quem sabe?, ele os abrirá para a glória... De ignomínia em ignomínia, nada me salva: nem o futuro nem a gratidão da pátria. Suas palavras talvez pudessem resgatar-nos – a mim e a minha mãe – do frio do esquecimento; ele, contudo, jamais as proferiu. Nada nos resta. Nada me resta. No espelho do quarto, nas águas do rio, nos dedos que me apontam, o seu rosto me persegue. Sempre. E esse silêncio! No entanto, as palavras... De que valem as palavras? O que dele me ficou, deveras, foi a infâmia. No abandono das horas tardias, quando a paciência esgota, cansadamente, a resignação e a calma, é o sangue que me fala. A ameaça que vem de fora, dia claro, nos gestos obscenos, nas vozes afiadas, troca-se em tortura: sou eu, noite adentro, meu verdugo. E, de mim, já não fujo: recolho-me no meu corpo, duplamente condenado. A infâmia que mora no meu ventre conspira contra todos nós. Minha alegria é o silêncio das coisas quando a escuridão noturna adormece a vizinhança.
QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1997. p. 9-10.
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